CAPÍTULO TRÊS
Ceres sonhava, e, nos seus sonhos, via exércitos em confronto. Ela via-se a ela a lutar à frente deles, vestida com uma armadura que brilhava ao sol. Ela via-se a liderar uma vasta nação, lutando numa guerra que determinaria o próprio destino da humanidade.
No entanto, em tudo aquilo, ela também se via a si mesma a semicerrar os olhos, à procura da sua mãe. Ela ia apanhar uma espada, olhou para baixo e viu que ela ainda não estava ali.
Ceres acordou com um sobressalto. Era noite e o mar à sua frente, iluminado pelo luar, era interminável. Ela balançava no seu pequeno navio, não vendo nenhum sinal de terra. Só as estrelas a convenciam de que ela ainda mantinha a sua pequena embarcação no caminho certo.
Constelações familiares brilhavam lá em cima. Havia a Cauda do Dragão, baixa no céu debaixo da lua. Havia o Olho do Ancião, formado em torno de uma das estrelas mais brilhantes no trecho da escuridão. O navio que o povo da floresta tinha meio construído, meio feito crescer parecia nunca se desviar da rota que Ceres tinha escolhido, mesmo quando ela tinha de descansar ou comer.
Do lado de fora, a estibordo do barco, Ceres viu luzes na água. Medusas luminosas flutuavam como nuvens subaquáticas. Ceres viu a figura rápida de alguns peixes parecidos com dardos deslizando pelo cardume, agarrando medusas a cada passagem e apressando-se antes que as gavinhas das outras lhes conseguissem tocar. Ceres observou até eles desaparecerem nas profundezas.
Ela comeu um pedaço da fruta doce e suculenta com que os habitantes da ilha haviam abastecido o seu barco. Quando ela partiu, parecia que havia o suficiente para durar semanas. Agora, não parecia assim tanto. Ela deu por si a pensar no líder do povo da floresta, tão bonito de uma maneira estranha e assimétrica, com a sua maldição a emprestar-lhe remendos onde a sua pele era verde-musgo ou rugosa como casca. Estaria ele de volta à ilha, a tocar a sua estranha música e a pensar nela?
À volta de Ceres, a névoa começava a erguer-se da água, engrossando e refletindo fragmentos do luar, mesmo enquanto bloqueava a sua visão do céu da noite. A névoa rodopiava e movia-se ao redor do barco, com gavinhas de névoa estendendo-se como dedos. Pensamentos sobre Eoin pareciam conduzir inexoravelmente a pensamentos sobre Thanos. Thanos, que tinha sido morto nas margens de Haylon antes de Ceres conseguir dizer-lhe que ela não lhe queria ter dito nenhuma das coisas duras que tinha dito quando ele se foi embora. Ali no barco sozinha, Ceres não conseguia fugir do quanto ela sentia saudades dele. O amor que sentia por ele parecia um fio que a puxava para Delos, embora Thanos já não lá estivesse.
A pensar em Thanos ferido. A lembrança parecia uma ferida aberta que talvez nunca fechasse. Havia tantas coisas que ela precisava fazer, mas nenhuma delas o traria de volta. Havia tantas coisas que ela teria dito se ele estivesse ali, mas ele não estava. Ali havia apenas o vazio da névoa.
A névoa continuava a serpentear-se em torno do barco, e, naquele momento, Ceres conseguia ver fragmentos de rochas a sair da água. Algumas eram afiadas de basalto preto, mas outras eram em cores do arco-íris, parecendo pedras preciosas gigantes no azul turvo do oceano. Algumas tinham marcas à volta e em espiral. Ceres não tinha certeza se eram naturais ou se alguma mão distante as tinha esculpido.
Estaria a sua mãe algures para além delas?
Ceres sentia-se entusiasmada com aquele pensamento, que se erguia por si acima como a névoa que girava ao redor do barco. Ia ver a sua mãe. A sua verdadeira mãe, não aquela que sempre a odiara e que a vendera aos escravos na primeira oportunidade. Ceres não sabia como seria essa mulher, mas a mera oportunidade de descobrir enchia-a de entusiasmo enquanto levava o pequeno barco ao longo das rochas.
Correntes fortes puxavam o seu barco, ameaçando puxar o leme da sua mão. Ceres duvidava que, se não fosse pela força que vinha do poder dentro de si, fosse capaz de o segurar. Ela puxou o leme para o lado e o seu pequeno barco respondeu com uma graciosidade quase viva, passando tão perto a deslizar por uma das rochas que quase lhe tocou.
Ela navegava pelas rochas e, a cada uma que passava, ela pensava no quanto estava mais perto de chegar à mãe. Que tipo de mulher seria? Nas suas visões, ela tinha estado indistinta, mas Ceres podia imaginar e ter esperança. Talvez ela fosse amável, gentil e amorosa; todas as coisas que ela nunca tinha tido da sua suposta mãe em Delos.
O que é que a sua mãe pensaria dela? Aquele pensamento apanhou Ceres enquanto ela levava o barco pela névoa. Ela não sabia o que a esperava. Talvez a sua mãe a olhasse e visse alguém que não tinha conseguido ter sucesso no Stade, que não tinha passado de uma escrava no Império, que perdera a pessoa que mais amava. E se a sua mãe a rejeitasse? E se ela fosse dura, c***l ou implacável?
Ou talvez, apenas talvez, ela tivesse orgulho.
Ceres saiu da névoa tão de repente que poderia ter sido uma cortina a subir. Naquele momento, o mar estava plano, livre das rochas que pareciam dentes projetados do mar. Imediatamente, ela viu que havia algo diferente. A luz da lua parecia mais brilhante de alguma forma, e ao redor dela, na noite, as nebulosas giravam em manchas de cor. Até as estrelas pareciam mudadas, de modo que, naquele momento, Ceres não conseguia distinguir as constelações familiares que lá estavam antes. Um cometa percorreu o horizonte, de vermelho impetuoso misturado com amarelos e outras cores que não tinham equivalente no mundo abaixo.
Mais estranho ainda era que Ceres sentia o poder a pulsar dentro de si, como se estivesse a responder àquele lugar. Parecia esticar-se dentro dela, abrindo-se e permitindo-lhe experimentar aquele novo lugar de uma centena de maneiras que ela nunca havia pensado antes.
Ceres viu uma forma a erguer-se da água, com um pescoço longo e em forma de serpentina, erguendo-se antes de mergulhar novamente sob as ondas, provocando uns quantos respingos. A criatura ergueu-se de novo por breves momentos e Ceres teve a impressão de algo enorme passar a nadar na água antes de desaparecer. Passaram a voar pela luz da lua o que parecia serem pássaros, e, foi apenas quando se aproximaram, que Ceres viu que eram traças prateadas, maiores do que a sua cabeça.
Os seus olhos, de repente, ficaram pesados com sono, Ceres amarrou com uma corda o leme no lugar, deitou-se e deixou que o sono tomasse conta dela.
***
Ceres acordou com o grito de aves. Ela pestanejou contra a luz do sol e sentou-se, vendo que, afinal, não eram aves. Duas criaturas com os corpos de enormes gatos rodopiavam lá em cima com asas parecidas com as das águias e b***s de aves de rapina. Porém, elas não mostravam sinais de se aproximarem. Estavam apenas a voar em círculos à volta do barco antes de voarem para longe.
Ceres observava-os, e porque o fazia, ela viu a ínfima parte de uma ilha para a qual elas se estavam a dirigir no horizonte. Tão rápido quanto conseguiu, Ceres ergueu a pequena vela novamente, tentando apanhar o vento que passava a correr por ela para se conseguir fazer levar em direção à ilha.
O pedaço de ilha tornou-se maior, e o que parecia serem mais pedras ergueu-se do oceano quando Ceres se aproximou, mas estas não eram as mesmas que tinham estado na névoa. Estes tinham arestas quadrangulares, coisas construídas, trabalhadas em mármore arco-íris. Algumas delas pareciam os pináculos de grandes edifícios, há muito afundados sob as ondas.
Metade de um arco sobressaía, tão grande que Ceres não conseguia imaginar o que poderia ter passado por debaixo dele. Ela espreitou pelo barco e olhou para baixo. A água era tão clara que ela conseguia distinguir o leito do mar. Não era muito fundo e Ceres conseguia ver os escombros de edifícios muito antigos lá em baixo. Era perto o suficiente para que Ceres conseguisse nadar até lá apenas sustendo a respiração. Ela não o fez, porém, tanto por causa das coisas que ela já tinha visto na água com também por causa do que estava por vir.
Ali estava. A ilha onde ela iria obter as respostas de que precisava. Onde ela iria aprender sobre o seu poder.
Onde ela iria, finalmente, conhecer a sua mãe.