Vendo que a Nayara estava preocupada com a princesa, sugeri que ela conversasse com a filha sobre o que estava sentindo. Por mais que a Gabriela tivesse me ouvido falar sobre a dor da mamãe ela ainda parecia se culpar. E só quem podia ajudá-la a livrar-se dessa culpa era a Nay, principalmente porque as duas sempre tiveram uma ligação muito forte. Foi ela quem contou para a filha que estava grávida e com todo carinho afirmou que a pequena jamais perderia seu lugar, mas que ganharia mais um irmão para amar. Era dessa demonstração de amor e desse cuidado que a Gabi estava precisando no momento.
Descansamos um pouco antes do café da manhã e após a refeição a Nayara pegou a Gabi no colo e me pegou pela mão e conduziu até o sofá na área externa da casa, perto da piscina. Imediatamente percebi que ela queria conversar com a Gabi e fiquei preocupada em como as duas ficariam depois de tocar em um assunto que era uma dor ainda sendo compreendida.
- Princesa. A sua mãe e eu sempre conversamos sobre tudo com você. E há algum tempo atrás conversamos sobre o dia que o Davi não estaria mais aqui conosco. Lembra que a sua mãe falou que ele nasceu com um problema no coração e que era um bebê frágil?
A Nayara segurou as lágrimas ao falar e a Gabi fixou o olhar no dela.
- Lembro. O Davi precisou ficar no hospital por uns dias pra cuidar do coração.
- Exatamente. Ele teve que fazer uma cirurgia quando nasceu e depois fez outra. Seu irmão precisava fazer uma terceira cirurgia, mas ele era muito bebê.
Ela novamente segurou as lágrimas e a Gabi segurou sua mão.
- Senta aqui no meu colo. Bem pertinho do meu coração.
A Nay pediu com a voz embargada e a pequena sentou em seu colo e continuou atenta.
- Perder o seu irmão está doendo muito em mim, mas você não tem culpa de nada princesa. Você é a melhor filha do mundo. É uma menina linda e tem o olhar doce como o da sua mãe. Vocês duas são tudo pra mim! Existem diferentes formas de amar. Eu amo você. Amo sua mãe e amo o Davi. Cada amor de um jeito especial. E assim como existe diferentes formas de amar, existe também diferentes formas de ficar triste. Sua mãe tem o jeito dela, você tem o seu e eu o meu. E como família nós três vamos ficar juntas, independente do que aconteça no nosso caminho. A minha tristeza não é sua culpa ou da sua mãe. Não tem um culpado é um sentimento que eu preciso entender. Você quer fazer alguma pergunta?
- O Davi também não tem culpa?
- Não. Ele não tem culpa nenhuma. O tempo que ele viveu só nos trouxe mais amor.
A Nayara declarou me olhando e em seguida voltou sua atenção a Gabi.
- Sinto saudade do Davi. Queria ter brincado com ele como brinco com os meninos da escola.
A declaração ingênua nos fez sorrir e foi a minha vez de falar.
- Seu irmão teria amado brincar com você princesa.
Afirmei sorrindo.
- Quero que não se preocupe comigo Gabi. Você tem que estudar e brincar. Com o tempo tudo vai melhorar eu prometo. E se por algum motivo você se sentir triste fale comigo ou com a sua mãe. Vamos fazer de tudo para protegê-la sempre. Você é a nossa princesa!
Ela acolheu a nossa filha em um abraço e depois me olhou e sorriu.
- Cariño. Tenho que ir trabalhar. Vocês duas vão ficar bem?
Perguntei e ela respondeu assentindo com a cabeça.
- Posso pegar o contato do grupo de mães que falamos?
Questionei olhando nos olhos dela. Não queria dar tempo para ela mudar de ideia.
- Pode sim. Vai tranquila que eu cuido dela. Vou levá-la para fazer os exames.
- Se precisar de qualquer coisa liga pra mim. Vou ao estúdio acompanhar a seção de fotos da Zatinni e depois tenho uma reunião no ateliê. Volto para casa assim que possível.
- Faça o que precisa fazer Paola. Ficaremos bem. Amo você!
Ela sorriu e eu não resisti e me aproximei para beijá-la.
- Eu te amo muito Cariño!
Sussurrei antes de beijá-la e ela ficou sorrindo. Um alento para o meu coração.
Dirigi até o estúdio da Catarina e pela primeira vez em semanas coloquei uma música para ouvir. Minutos depois senti a melancolia me tomando e ao parar no estacionamento do estúdio comecei a chorar e me senti angustiada. Por um instante parecia que o mundo era um lugar hostil e que o único lugar seguro era dentro daquele carro. Senti-me assustada e sem ar até ouvir uma voz conhecida e ao olhar pela janela fixei meu olhar na Daniela.
- Oi. Desculpa Paola. Percebi que está parada aqui há alguns minutos.
Ela disse assim que eu baixei os vidros das janelas.
- Não sei o que aconteceu. Estou parada há quanto tempo?
- Mais de dez minutos. Fiquei pensando se devia ou não a interromper.
- Que bom que interrompeu. Você pode me ajudar com algumas sacolas.
- Sim. Sei que não tenho o direito de me meter, mas acho que você precisa de mais alguns dias em casa Paola. É muito difícil trabalhar quando estamos lidando com tantos sentimentos.
A ponderação dela foi sensata, mas ficar em casa o dia todo não estava me ajudando.
- Você pode dizer o que pensa Dani. Somos amigas. Prefiro trabalhar e me distrair com algo produtivo. A Letícia está no estúdio?
- Sim. Chegou a mais de uma hora e está pronta para fotografar.
- Trouxe mais essas peças para ela. São perfeitas para a Zatinni.
Declarei tentando me apegar a uma sensação diferente da que estava no carro.
Durante a seção fiquei a maior parte do tempo ao lado da Catarina e sugeri fotos em ângulos diferentes para fazermos uma brincadeira e esconder detalhes das peças que ainda seriam lançadas. A Letícia também contribuiu não apenas por ser uma bela mulher, mas por ser uma artista com origem circense e ter uma essência mágica e misteriosa que ajudou muito nas fotos. Em diversos momentos percebi que a Catarina estava empolgada em fotografá-la e isso pareceu até deixar a Dani um pouco fechada. Certamente porque estava com ciúme pela amiga, que era esposa da Zatinni.
Após a seção convidei a Dani e a Letícia para almoçar. Durante a refeição a modelo e também influenciadora digital, questionou sobre meus planos para voltar ao trabalho social que estávamos fazendo em uma comunidade carente da cidade.
- Tenho pensando em fazer alguma ação ou doação no meu aniversário. Esse ano eu não tenho condições de comemorar, mas seria bom fazer algo para ajudar as pessoas.
Afirmei olhando para ela.
- Tem um orfanato que eu visito com um grupo de artistas todo mês. Sempre levamos um pouco de alegria para as crianças e eu percebi que elas são muito carentes de roupa. Normalmente as pessoas fazem doação de brinquedos. De repente você pode fazer algo por elas. Seria tão simbólico no momento que está atravessando.
A sugestão me cativou imediatamente.
- Gostei da ideia Letícia. Podemos conversar melhor outro dia e pensar em alguma ação e doação para as crianças. Se tiver algo mais em mente estou sempre aberta.
- Fico muito feliz em saber que está disposta a ajudar.
A Zatinni era muito engajada em projetos sociais e através da indicação dela eu sempre acabava contribuindo de algum modo. Lembrando o que a Nayara disse a Gabi sobre diferentes formas de amar, pensei que a doação seria um meio de demonstrar afeto. E com esse gesto eu posso transbordar um pouco do amor que carrego em meu coração.
Depois do almoço segui para o ateliê e participei de uma reunião virtual com o meu pai e com a CEO responsável pela administração da nossa grife e empresa na Europa. Em alguns momentos senti-me dispersa e percebendo isso senti que estava precisando ir à terapia e colocar meus sentimentos para fora depois do ocorrido na festa da Gabi. Sai do trabalho direto para uma consulta em caráter de urgência. Falei sobre o aniversário e a tensão com a Gabi e a Nayara. Sobre a ida ao hospital na madrugada e a conversa com a Nayara quando voltamos da pediatra. Também mencionei o passo da Nay ao falar com a filha e a minha paralisia no carro depois de ficar triste ao ouvir música. No fim da seção a terapeuta sugeriu que eu devia expressar um pouco dos meus sentimentos tocando algum instrumento, uma vez que a música parecia tocar meu coração com maior profundidade. Gostei muito da sugestão e antes de deixar a sala pedi o contato do grupo de mães para passar a Nayara. Tinha esperança de que conhecer outras mães em luto fosse ajudá-la a começar um novo caminho.
Quando voltei para casa e não encontrei ninguém além dos funcionários domésticos, fiquei extremamente inquieta e angustiada. Tomei um banho na tentativa de relaxar e senti vontade de beber um dos espumantes da caixa que a Fernanda Porto me presenteou. Ponderei ao pensar no que a Nayara pensaria se me encontrasse bebendo e no fim resolvi abrir uma garrafa. Não havia nada feliz para comemorar, mas ao menos a sensação de angústia diminuiu e ao me sentir mais leve resolvi tocar piano.
De repente me peguei em uma melodia triste e fui explorando meus sentimentos aumentando o tom das notas até sentir meu coração batendo forte. Fiquei triste. Com raiva. Com medo. Confusa. E por fim esperançosa. Minha vida estava repleta de emoções intensas, memórias tristes e felizes. E ao tocar explorava todas essas emoções. Ouvia notas sofridas e em seguida vibrantes. A composição da vida era sempre complexa, com algumas notas difíceis e outras mais doces.
Enquanto tocava a Nayara chegou com a Gabriela e com a minha mãe. E respeitando meu momento elas sentaram e ficaram me olhando em silêncio. Quando terminei de tocar senti que estava mais leve. Libertei-me da angústia no piano e concluí que a terapeuta tinha razão, precisava lidar com meus sentimentos de outras formas além da terapia.
- Você está bem?
Questionou a Nayara.
- Estou melhor agora. Fiquei desconfortável ao chegar e não encontrar ninguém em casa.
- Demoramos um pouco porque a sua mãe insistiu na ideia de irmos ao cinema e a Gabi ficou animada. Estava tocando com muita vontade. Gosto especialmente quando se entrega ao tocar. Como foi o ensaio e a reunião?
Fiquei feliz com o interesse dela.
- O ensaio foi excelente. Enquanto a reunião eu não sei o que dizer. Confesso que divaguei.
- Aconteceu algo especial que eu deva saber?
Ela perguntou olhando para a taça de espumante.
- A Fernanda pediu que lhe desse uma opinião sobre o espumante.
Justifiquei minha vontade contando uma mentira.
- E o que você achou?
- Do quê?
Questionei olhando para ela.
- Do espumante Paola. Está realmente divagando. Deve ser cansaço.
- O espumante é delicioso. E você tem razão estou exausta. Enviei o número do grupo para você. Vai realmente entrar em contato para participar de uma reunião?
- Vou sim. Dei minha palavra para você. Pode confiar em mim.
Ela beijou meu rosto e acariciou meus cabelos.
- Mãe. Posso ficar em casa amanhã também?
A Gabi me abordou com um sorriso contente nos lábios e isso me trouxe alívio.
- Filha, não pode ficar faltando à escola. Você sabe disso.
- Só mais um dia mãe. Amanhã a vovó Marta vai embora. Quero ir com a mamãe até o aeroporto, por favor!
Olhei para a Nayara que piscou um olho pra mim e eu entendi que ela concordava.
- Tudo bem, mas só amanhã.
Ela me agradeceu com um abraço.
- Vou deixar a Marta no aeroporto e depois encontrar com a Isabel no escritório. Pensei em almoçarmos fora. Você a Gabi e eu. Tem horário disponível amanhã?
Sorri para ela.
- Pra vocês duas tenho horário a vida inteira Cariño.
Afirmei olhando para ela e sentindo que estávamos realmente caminhando para uma nova fase das nossas vidas. O luto estava sendo compartilhado em família, mesmo que ainda fosse um assunto que nos deixava frágil. Ao menos havíamos superado a fase do silêncio e da negação.
Após o jantar minha mãe pediu para colocar a Gabi na cama e eu aproveitei para contar a Nayara sobre a sugestão da Letícia em relação ao orfanato. Ela me ouviu com atenção e ainda me sugeriu a unir o projeto das costureiras com a vontade de doar algumas roupas às crianças do orfanato. Fiquei animada com a ideia e não perdi tempo ao enviar uma mensagem para a Zatinni e convidá-la para uma conversa no dia seguinte. Fui dormir pensando nessa ideia e acabei planejando algo além do que sugeriu a Nayara.
Na manhã seguinte despedi-me da minha mãe e agradeci pelo tempo que ela ficou nos oferecendo apoio. Se não fosse pela força dela eu certamente teria desmoronado ao ter que lidar sozinha com o silêncio da Nayara. No fim a minha mãe escolheu o melhor momento para retornar à Madrid.
- Obrigada mãe! Nesses dias o seu apoio foi fundamental.
Despedi-me dela com um abraço demorado.
- O caminho de vocês sempre será de luz. Mesmo que em algumas passagens vocês se deparem com uma penumbra. Continuei sendo paciente e não deixe de se cuidar. O luto não é apenas da Nayara ele é seu também. Ligue se precisar.
- Vamos nos encontrar no lançamento da próxima coleção. Vou ver se levo a Nayara e a Gabriela dessa vez. Merecemos uma viagem em família.
- Ótima ideia. Vejo vocês em alguns meses.
Segui para o escritório e antes do encontro com a Letícia coloquei algumas das minhas ideias no papel para que ela entendesse melhor. Conversamos por pouco mais de meia hora e ela ficou empolgada com meus planos. O bom de ter parceria com a Zatinni era que não havia nada impossível para ela e sempre pensei da mesma maneira.
No horário de almoço a Nayara chegou com a Gabriela e as duas me surpreenderam com flores. Há muito tempo não recebia toda essa atenção da minha esposa e isso me deixou até emocionada.
- Obrigada Cariño!
Agradeci beijando os lábios dela de leve.
- A Gabi e eu levamos flores para o Davi. Espero não ter feito errado.
- Tudo bem. Ela precisa viver esse momento ao seu lado. Você fez certo.
A Gabriela chamou minha atenção e começou a falar da ida ao aeroporto e contou que a Nayara e a minha mãe choraram muito ao se despedirem. Muitas vezes parecia que a Nay tinha mais conexão com a minha mãe do que eu. Essa ligação entre as duas não me espantava mais, porém no começo foi muito difícil de entender.
Durante a refeição a Nayara contou que havia ligado para falar com a responsável pelo grupo de mães e que havia concordado em participar da próxima reunião. Percebi que ela estava aceitando bem a ideia e tentei não comemorar antes do tempo, mas senti que isso seria realmente importante para ajudá-la a seguir em frente e desabafar sobre a dor que estava se esforçando para esconder pensando no bem estar da nossa família.
Ao sairmos do restaurante resolvi ir trabalhar em casa e ficar por perto caso a Gabi ou a Nay precisassem de mim. Consegui desenhar como há muito tempo não desenhava. O plano que tinha em mente estava me deixando inspirada. Isso porque ele era um presente para comemorar os nove anos da primeira vez que a Nayara e eu ficamos juntas e do nosso namoro.
A alegria de trabalhar em um projeto que no fim traria felicidade há muitas crianças me tocou profundamente. Desenhei roupas para meninas e meninos e acompanhei a produção das costureiras que estavam colocando todo amor e carinho nas peças. Os dias foram se passando e aos poucos a Nayara e eu voltamos a conversar todas as noites antes de dormir. Nos dias em que ela participava das reuniões sempre tinha alguma história para me contar e eu percebi que a única forma que ela sabia lidar com o luto era sendo compreensiva com a dor de outras pessoas. Essa era a forma que ela processava tudo, sempre se colocando no lugar do outro mesmo quando sentia a mesma dor.
Na véspera do meu aniversário quando todas as peças infantis que pedi ficaram prontas, resolvi seguir com meu plano e preparei o quarto do Davi para fazer uma surpresa a Nayara. Espalhei todos os desenhos que fiz e a marca que criei exclusivamente para as peças destinadas ao orfanato. Quando terminei de organizar tudo fiquei com as pernas trêmulas e um embrulho no estômago ao pensar em qual seria a reação dela. Temi ter me precipitado em meus planos, mas era tarde para voltar atrás.
- Paola.
Ela bateu na porta do quarto que estava trancada.
- Cariño.
- Está tudo bem? Estranhei você me pedir para vir ao quarto do Davi.
Qualquer coisa a deixava alarmada.
- Está tudo bem. Preparei algo pra você. É o meu presente por nossos nove anos juntas. Depois de tudo que nós duas passamos eu pensei em fazer algo especial. Queria que o Davi participasse desse momento de alguma forma. Espero que entenda o que meu gesto significa.
Falei apreensiva e ela ficou séria.
Segurei sua mão e a deixei entrar no quarto.
Em primeiro momento ela não pareceu entender nada e me lançou alguns olhares confusos, mas foi só ver a marca das roupas que ela me olhou esboçando um sorriso emocionado.
- Pequeno Davi. Eu criei essa marca pensando em uma forma de eternizar o amor que sentimos por nosso filho e estendê-lo para a felicidade de outras crianças. Nosso pequeno não teve a oportunidade de crescer, correr, brincar, jogar bola ou de bonecas se ele quisesse. E agora ele vai poder fazer tudo isso através de outras crianças. O Davi, como você disse, só nos trouxe amor e podemos doar esse amor a outros meninos e meninas.
Declarei olhando para ela que continuava sorrindo emocionada.
- É um gesto lindo minha ruiva.
Sorri como uma boba ao ouvi-la finalmente me chamar de forma afetuosa.
- Estou feliz por ver esse sorriso lindo no seu rosto.
Declarei chegando perto dela que acariciou meus cabelos.
- Agradeço muito por tê-la como esposa Paola. Só você é capaz de um gesto desses. Nosso pequeno acaba de crescer sob seus cuidados e esse pode ser o legado dele. É a forma mais linda de expandir o amor que ele trouxe a nossa vida. Assim como ele sempre será a expansão do nosso amor. Obrigada por esse presente! É o mais lindo que recebi em toda minha vida!
Colamos os nossos rostos e nos beijamos. Um beijo que nos reaproximou depois do tempo em que mesmo estando presentes permanecíamos ausentes.