CAPÍTULO UM-1

2030 Words
CAPÍTULO UM Ceres corria pelos becos de Delos, numa grande excitação, sabendo que não poderia atrasar-se. Apesar de o sol estar quase a nascer, o ar abafado cheio de poeira já sufocava na antiga cidade de pedra. Com as pernas a queimar e os pulmões a doerem-lhe, ela, ainda assim, esforçou-se por correr ainda mais rápido, saltando por cima de um dos inúmeros ratos que rastejavam para fora das sarjetas e do lixo nas ruas. Ela já conseguia ouvir o ribombar distante. O seu coração palpitava em antecipação. Algures lá à frente, ela sabia, o Festival da Matança estava prestes a começar. Com as mãos a arrastarem-se ao longo das paredes de pedra enquanto se contorcia e virava pelos estreitos becos, Ceres olhou para trás para se certificar que os seus irmãos ainda a estavam a acompanhar. Ficou aliviada ao ver Nesos, nos seus calcanhares, e Sartes, apenas a alguns passos atrás. Aos dezanove anos, Nesos era apenas dois ciclos solares mais velho do que ela, enquanto Sartes, o seu irmão mais novo, era quatro ciclos solares mais jovem, à beira de deixar de ser uma criança. Ambos, com os seus longos cabelos cor de areia e olhos castanhos, eram exatamente iguais um ao outro - e iguais aos seus pais – porém, nada parecidos com ela. Ainda assim, apesar de Ceres ser uma miúda, eles nunca tinham sido capazes de a acompanhar. "Despachem-se!", Ceres gritou para trás. Ouviu-se outro ribombar e, apesar de ela nunca ter ido ao festival, ela imaginava-o com detalhes vívidos: toda a cidade, todos os três milhões de cidadãos de Delos, lotando o Stade naquele feriado de solstício de verão. Seria diferente de tudo o que ela já tinha visto e se os seus irmãos e ela não se apressassem não restaria um único assento. Ganhando velocidade, Ceres limpou uma gota de suor da testa e limpou-a à sua desgastada túnica marfim, que era da mãe dela. Nunca ninguém lhe havia dado roupas novas. De acordo com a sua mãe, que idolatrava os seus irmãos e parecia reservar um ódio e inveja especiais por ela, ela não o merecia. "Espera!", gritou Sartes, com uma voz estridente, ligeiramente irritado. Ceres sorriu. "Devo levar-te ao colo, então?", gritou-lhe ela. Ela sabia que ele odiava quando ela o provocava, porém o seu comentário sarcástico iria motivá-lo a conseguir acompanhá-la. Ceres não se importava que ele a seguisse; ela achava encantador que ele, aos treze anos, fizesse qualquer coisa para ser considerado o seu par. E mesmo que ela nunca o chegasse a admitir abertamente, ela precisava fortemente que ele precisasse dela. Sartes grunhiu ruidosamente. "A mãe vai m***r-te quando descobrir que lhe desobedeceste novamente!", gritou ele. Ele estava certo. Ela iria fazê-lo certamente – pelo menos, iria dar-lhe um bom açoite. Quando a sua mãe lhe bateu pela primeira vez Ceres tinha cinco anos e aquele foi o verdadeiro momento em que ela perdeu a sua inocência. Até então, o mundo havia sido divertido, amável e bom. Depois disso, nada tinha voltado a ser seguro e ela apenas se conseguia agarrar à esperança de um futuro onde iria conseguir afastar-se dela. Agora, ela era mais velha e tenaz. Mas ainda assim, aquele sonho ainda a corroía lentamente por dentro. Felizmente, Ceres sabia que os seus irmãos nunca a denunciariam. Eles eram tão leais para com ela, como ela era para com eles. "Então é bom que a mãe nunca venha a saber!", gritou-lhe ela. "Mas o pai vai saber!", disse Sartes inesperadamente. Ela riu-se. O pai já sabia. Eles tinham feito um acordo: se ela ficasse até tarde para acabar de afiar as espadas que deviam ser entregues no palácio, ela poderia ir ver a Matança. E assim ela o fez. Ceres chegou ao muro no fundo do beco e, sem parar, cravou os seus dedos em duas fendas e começou a t****r. As suas mãos e pés moviam-se rapidamente e ela subiu, uns bons vinte pés, até ao topo. Levantou-se, respirando com dificuldade. O sol cumprimentou-a com os seus raios brilhantes. Ela pôs a mão à frente dos olhos. Ela arfava. Normalmente, a Cidade Velha estava pontilhada com alguns cidadãos, um gato de rua ou cão aqui e ali - mas hoje estava nitidamente com vida. E cheia de pessoas. Ceres nem sequer conseguia ver a calçada sob o mar de pessoas que se comprimiam na Praça do Chafariz. Ao longe o mar brilhava num azul vivo, enquanto o imponente e branco Stade ali estava, como uma montanha entre tortuosas ruas e casas amontoadas de dois e três andares. Ao redor da praça, os comerciantes tinham alinhado barracas, ansiosos por vender comida, jóias ou roupas. Uma rajada de vento roçou-lhe no rosto e o cheiro dos assados acabados de fazer infiltrou-se nas suas narinas. O que ela não daria por satisfazer a v*****e de morder aquela comida. Ao sentir uma pontada de fome ela colocou os braços à volta da sua barriga. O pequeno-almoço naquela manhã tinha sido umas poucas colheres de mingau ensopado, o que de alguma forma tinha conseguido deixar o seu estômago ainda com mais fome do que antes de o comer. Dado que hoje era o seu décimo oitavo aniversário, ela esperava, pelo menos, um pouco de comida extra na sua tigela - ou um abraço ou algo assim. Mas ninguém tinha dito nada. Ela duvidava que eles sequer se lembrassem. A luz apanhou-lhe os olhos e Ceres olhou para baixo e vislumbrou uma carruagem dourada a ziguezaguear pelo meio da multidão como uma bolha através do mel, devagar e a brilhar. Ela franziu a testa. Com a sua excitação, ela nem sequer tinha considerado a hipótese de que a realeza estaria no evento, também. Ela desprezava-os, desprezava a sua arrogância, desprezava que os seus animais fossem mais bem alimentados do que a maioria das pessoas de Delos. Os irmãos dela tinham esperança que um dia triunfariam sobre o sistema das classes. Mas Ceres não partilhava do otimismo deles: para haver algum tipo de igualdade no Império, seria necessário haver uma revolução. "Estás a vê-lo?", ofegava Nesos enquanto trepava ao seu lado. O coração de Ceres acelerou ao pensar nele. Rexus. Ela, também, já se havia questionado se ele já estaria ali e havia examinado, sem sucesso, as multidões. Ela abanou a cabeça. "Ali", apontou Nesos. Ela seguiu a indicação do seu dedo em direção ao chafariz, semicerrando os olhos. De repente, ela viu-o, não conseguindo reprimir a sua imensa excitação. Ela sentia sempre o mesmo quando o via. Lá estava ele, sentado na beira do chafariz, apertando o seu arco. Mesmo àquela distância, ela conseguia ver os músculos dos seus ombros e peito a movimentarem-se debaixo da sua túnica. Poucos anos mais velho do que ela, ele tinha o cabelo loiro que se destacava entre cabeças pretas e castanhas. A sua pele bronzeada brilhava ao sol. "Espera!", gritou uma voz. Ceres olhou para trás e, lá em baixo no muro, viu Sartes, lutando para subir. "Despacha-te ou deixamos-te para trás!", incitou Nesos. Claro que eles nem sonhavam em deixar para trás o seu irmão mais novo, embora efetivamente ele precisasse de aprender a acompanhá-los. Em Delos, um momento de fraqueza podia significar a morte. Nesos passou a mão pelos cabelos, recuperando o fôlego, também, enquanto observava a multidão. "Então, em quem é que vais apostar o teu dinheiro?", perguntou. Ceres virou-se para ele e riu-se. "Que dinheiro?", perguntou ela. Ele sorriu. "Se tivesses algum", ele respondeu. "Brennius", respondeu ela sem pausa. A sobrancelha dele ergueu-se de surpresa. "A sério?", perguntou ele. "Porquê?" "Não sei", ela encolheu os ombros. "Apenas um palpite." Mas ela sabia. Ela sabia muito bem, melhor do que os seus irmãos, melhor do que todos os rapazes da sua cidade. Ceres tinha um segredo: ela não tinha contado a ninguém que tinha, em determinada ocasião, vestindo-se como um rapaz e treinado no palácio. Por decreto real era p******o – punido com a morte – que as miúdas aprendessem os modos dos lordes de combate, ainda que os plebeus do s**o masculino fossem bem-vindos para aprender em troca de quantidades iguais de trabalho nos estábulos do palácio, trabalho que ela fazia alegremente. Ela tinha visto Brennius e tinha ficado impressionada com a forma como ele lutava. Ele não era o maior dos lordes de combate, no entanto, os seus movimentos eram calculados com precisão. "Nem pensar", respondeu Nesos. "Será Stefanus." Ela abanou a cabeça. "Stefanus será morto nos primeiros dez minutos", disse ela, sem rodeios. Stefanus era a escolha óbvia, o maior dos senhores de combate e provavelmente o mais forte; no entanto, ele não era tão calculista quanto Brennius ou alguns dos outros guerreiros que ela tinha visto. Nesos deu uma gargalhada. "Dar-te-ei a minha espada boa se for esse o caso." Ela olhou para a espada agarrada à sua cintura. Ele não tinha ideia dos ciúmes com que ela tinha ficado quando ele recebera aquela obra-prima de a**a como presente de aniversário da Mãe três anos antes. A espada dela era uma sobra antiga que o seu pai tinha atirado para o monte da reciclagem. Oh, as coisas que ela seria capaz de fazer se ela tivesse uma a**a como a de Nesos. "Não vou deixar que te esqueças do que estás a dizer, sabes", disse Ceres, sorrindo, embora, na realidade, ela nunca fosse ficar com a espada dele. "Eu não esperaria menos", ele sorriu. Ela cruzou os braços à frente do peito e um pensamento sombrio passou-lhe pela cabeça. "A mãe não o iria permitir", disse ela. "Mas o Pai sim", disse ele. "Ele tem muito orgulhoso em ti, tu sabes." O comentário simpático de Nesos apanhou-a desprevenida e, sem saber exatamente como o aceitar, baixou os olhos. Ela amava o seu pai do fundo do seu coração e sabia que ele a amava. No entanto, por algum motivo, o rosto da sua mãe aparecia diante de si. Tudo o que ela queria era que a sua mãe a aceitasse e amasse tanto quanto aos seus irmãos. Mas por muito que tentasse, Ceres sentia que nunca seria suficiente boa aos seus olhos. Sartes grunhiu ao dar os últimos passos, subindo atrás deles. Ele era cerca de uma cabeça mais baixo do que Ceres e tão magro como um grilo, mas ela estava convencida de que ele iria germinar como um rebento de bambu a qualquer momento. Tinha sido isso que tinha acontecido com Nesos. Agora ele era um galã musculado, com seis vírgula três pés de altura. "E tu?", Ceres virou-se para Sartes. "Quem é que achas que vai ganhar?" "Estou contigo. Brennius. " Ela sorriu e despenteou-o. Ele dizia sempre tudo o que ela dizia. Ouviu-se outro ribombar, a multidão aumentou e ela sentiu-se compelida pela urgência. "Vamos", disse ela, "não há tempo a perder." Sem esperar, Ceres desceu do muro, atingiu o chão e desatou a correr. Mantendo em vista o chafariz, ela atravessou a praça, ansiosa por chegar até Rexus. Ele virou-se e os seus olhos arregalaram-se deleitados quando ela se aproximou. Ela correu para ele, sentindo os seus braços a envolverem a sua cintura, enquanto ele pressionava a sua bochecha por barbear contra a dela. "Ciri", disse ele com uma voz baixa e rouca. Um arrepio percorreu-lhe o corpo e ela virou-se e olhou para os olhos azuis cobalto de Rexus. Com seis pés vírgula um, ele era quase uma cabeça mais alto do que ela, loiro, com cabelo grosso a emoldurar o seu rosto em forma de coração. Ele cheirava a sabão e a ar livre. Céus, era bom vê-lo novamente. Apesar de ela conseguir cuidar de si mesma em quase qualquer situação, a presença dele trazia-lhe uma sensação de calma. Ceres ergueu-se sobre as pontas dos pés e enrolou os braços à volta do seu largo pescoço. Ela nunca o tinha visto como mais do que um amigo até o ouvir falar da revolução e do exército ilegal de que ele era m****o. "Vamos lutar para nos libertar do jugo da opressão", tinha-lhe dito ele anos atrás. Ele tinha falado com tanta paixão sobre a rebelião que, por um momento, ela tinha realmente acreditado que derrubar a família real era possível.
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