CAPÍTULO DOIS
Kate estava acima de Ashton e observava-a a arder. Ela tinha pensado que ficaria feliz ao ver isto, mas não era apenas a Casa dos Não Reclamados nem os espaços onde os trabalhadores portuários mantinham as suas barcaças.
Era tudo.
Madeira e palha incendiavam-se, e Kate conseguia sentir o terror das pessoas que estavam dentro do amplo círculo de casas. Canhões rugiam sobre os gritos dos moribundos, e Kate via bandos de edifícios a cair tão facilmente como se fossem feitos de papel. Ouviam-se bacamartes, enquanto flechas preenchiam o ar de tal forma que era difícil ver o céu para lá delas. Elas caíam, e Kate atravessava a chuva de espadas com a calma estranha e isolada que só poderia vir de um sonho.
Não, não era um sonho. Era mais do que isso.
Quaisquer que fossem os poderes da fonte de Siobhan, eles atravessavam Kate agora, e ela via a morte à sua volta. Os cavalos corriam pelas ruas e os cavaleiros golpeavam para baixo com sabres e espadas. Ela ouvia gritos a toda a sua volta até parecer que eles preenchiam a cidade tão seguramente quanto o fogo. Até mesmo o rio parecia estar em chamas agora, embora, ao olhar, Kate visse que eram as barcaças que preenchiam a sua ampla extensão, com o fogo a saltar de uma para a outra enquanto os homens lutavam para se manterem afastados. Kate havia estado numa barcaça, e ela podia imaginar o quão aterrorizante aquelas chamas deviam ser.
Havia figuras a correr pelas ruas, e era fácil distinguir os cidadãos em pânico da cidade e as figuras em uniformes de cor ocre que seguiam com as espadas, atacando-os enquanto corriam. Kate nunca tinha visto o saque de uma cidade antes, mas isto era algo h******l. Era violência gratuita, sem sinal de parar.
Havia linhas de refugiados para lá da cidade agora, que se dirigiam para a saída com todos os bens que conseguiam levar, em longas filas na direção ao resto do país. Iriam eles procurar refúgio nos Ridings ou mais longe, para cidades como Treford ou Barriston?
Então Kate viu os cavaleiros a avançarem na direção deles, e ela percebeu que eles não iriam chegar tão longe. Porém, havia fogo trás deles, pelo que não havia nenhum lugar para onde fugir. Como é que seria ser apanhado assim?
Ela sabia, no entanto, não era?
A cena mudou, e agora Kate sabia que ela não estava a olhar para algo que pudesse ser, mas para algo que tinha sido. Ela conhecia este sonho, porque era um que ela tinha muitas vezes. Ela estava numa casa velha, uma grande casa, e o perigo estava aproximava-se.
Porém, havia algo diferente desta vez. Havia pessoas lá, e Kate olhou para eles de tão longe lá em baixo que ela sabia que deveria estar minúscula. Havia um homem lá, parecendo preocupado mas forte num veludo de nobre, atirado para cima apressadamente, e uma peruca preta encaracolada descartada com a sua pressa para lidar com a situação, revelando por baixo cabelos cinza cortados. A mulher que estava com ele era encantadora, mas desgrenhada, como se normalmente demorasse uma hora para se vestir com a ajuda de criados mas agora tivesse demorado apenas minutos. Ela tinha um olhar gentil, e Kate estendeu-lhe a mão, não entendendo porque a mulher não a agarrou, quando isso era o que ela costumava fazer.
"Não há tempo" disse o homem. "E se todos nós nos tentarmos libertar, eles limitar-se-ão a nos seguir. Precisamos ir separadamente."
"Mas as crianças..." começou a mulher. Kate sabia agora, sem lhe terem dito, que esta era a sua mãe.
"Elas ficarão mais seguras longe de nós" disse o seu pai. Ele virou-se para uma serva, e Kate reconheceu a sua enfermeira. "Tens de as tirar daqui para fora, Anora. Leva-as para um lugar seguro, onde ninguém as reconheça. Nós vamos encontrá-las quando esta loucura terminar."
Kate viu Sophia nesse momento, parecendo muito mais nova, mas também parecendo pronta para argumentar. Kate conhecia aquele olhar demasiado bem.
"Não" disse a mãe delas. "Vocês têm de ir, vocês as duas. Não há tempo. Corram, minhas queridas." Ouviu-se um estrondo do outro lado da casa. "Corram."
Kate estava a correr então, com a sua mão firme na de Sophia. Ouviu-se um estrondo, mas ela não olhou para trás. Ela simplesmente continuava a ir ao longo dos corredores, parando apenas para se esconder quando passaram figuras sombrias. Elas correram até encontrarem um conjunto aberto de janelas, saindo da casa, para a escuridão...
Kate pestanejou, voltando a si mesma. A luz da manhã acima dela parecia muito brilhante, com um brilho ofuscante. Ela tentou agarrar o sonho enquanto acordava, tentou ver o que tinha acontecido depois, mas ele já estava a fugir mais rápido do que ela conseguir segurar. Kate resmungou com isso, porque ela sabia que a última parte não tinha sido um sonho. Tinha sido uma memória, e era uma memória que Kate queria ser capaz de ver mais do que todas as outras.
Ainda assim, ela tinha os rostos dos seus pais na sua mente agora. Ela manteve-os lá, obrigando-se a não se esquecer. Ela sentou-se lentamente, com a cabeça a andar à roda no rescaldo do que ela tinha visto.
"Deves levar as coisas lentamente" disse Siobhan. "As águas da fonte podem ter efeitos secundários."
Ela estava sentada à beira da fonte, que parecia agora novamente arruinada, não estando nem brilhante nem fresca como havia estado quando Siobhan tinha tirado água de lá para Kate beber. A aparência dela era exatamente a mesma da noite anterior, até mesmo as flores entrelaçadas nos seus cabelos pareciam intactas, como se ela não se tivesse movido todo aquele tempo. Ela estava a observar Kate com uma expressão que não dizia nada sobre o que ela estava a pensar, e os muros que ela mantinha ao redor da sua mente significavam que ela era um absoluto vazio, mesmo para o poder de Kate.
Kate tentou levantar-se simplesmente porque ela não seria impedida por esta mulher. A floresta ao redor dela parecia andar à roda como ela, e Kate viu uma névoa de cores ao redor das bordas de árvores, pedras e galhos. Kate cambaleou, tendo de colocar a mão numa coluna partida para se estabilizar.
"Vais ter de aprender a ouvir-me se quiseres ser minha aprendiza" disse Siobhan. "Não podes esperar conseguir simplesmente levantares-te depois de tantas alterações no teu corpo."
Kate cerrou os dentes e esperou que a sensação de tonturas passasse. Não demorou muito. A julgar pela sua expressão, até mesmo Siobhan ficou surpreendida quando Kate se afastou do suporte da coluna.
"Nada m*l" disse ela. "Estás a ajustar-te mais depressa do que eu poderia ter pensado. Como é que te sentes?"
Kate abanou a cabeça. "Eu não sei."
"Então leva o tempo que precisares para pensar" Siobhan respondeu ligeiramente aborrecida. "Eu quero uma aluna que pensa sobre o mundo, ao invés de apenas lhe reagir. Eu acho que és tu. Queres provar que estou errada?"
Kate abanou a cabeça novamente. "Estou a ficar... o mundo parece diferente quando eu olho para ele."
"Estás a começar a vê-lo como ele é, com as correntes da vida" disse Siobhan. "Vais habituar-te a isso Tenta mover-te."
Kate deu um passo vacilante, depois outro.
"Tu consegues fazer melhor do que isso" disse Siobhan. "Corre!"
Kate ficou assustada porque aquilo era demasiado parecido com os seus sonhos, e ela deu por si a questionar-se o quanto do seu sonho Siobhan tinha visto. Ela havia dito que ela e Kate não eram as mesmas, mas se elas estivessem suficientemente perto para a outra mulher a querer ensinar, talvez estivessem perto o suficiente para Siobhan ver os seus sonhos.
Não havia tempo para pensar sobre isso naquele momento, porque Kate estava muito ocupada a correr. Ela correu pela floresta, com os pés a deslizar sobre o musgo, a lama, as folhas caídas e os galhos partidos. Foi só quando viu as árvores a chicotear que ela percebeu o quão rápido ela se estava a deslocar.
Kate saltou, e, de repente, ela estava a pular para os ramos mais baixos de uma das árvores ao seu redor, tão facilmente como se ela tivesse subido de um barco para uma doca. Kate equilibrou-se no ramo, parecendo sentir cada sopro de vento que o movia antes de este a conseguir sacudir. Ela saltou de volta para o chão e, por impulso, deslocou-se para um ramo pesado e caído que ela nunca poderia ter desejado erguer antes. Kate sentiu a rugosidade da casca contra as suas mãos ao agarrá-lo, e ergueu-o suavemente, levantando-o acima da sua cabeça como um dos homens fortes nas feiras que chegavam a Ashton de vez em quando. Ela atirou-o, observando o ramo desaparecer nas árvores para cair com um estrondo.
Kate ouviu isso, e, por um momento, ela ouviu todos os outros sons ao redor dela na floresta. Ela ouviu o sussurro das folhas quando pequenas coisas se moviam por baixo delas, o chilrear dos pássaros lá em cima nos ramos. Ela ouviu o roçar de pequenos pés no chão e reconheceu o local onde uma lebre apareceria antes de chegar. A panóplia de sons era demasiada de início. Kate teve de tapar os seus ouvidos com as mãos para evitar as gotas de água das folhas, o movimento de insetos ao longo da casca. Ela tapou-os da maneira que tinha aprendido com o seu talento para ouvir pensamentos.
Ela voltou para o local onde a fonte arruinada estava, e Siobhan estava lá, a sorrir com o que parecia ser uma pitada de orgulho.
"O que está a acontecer comigo?" Kate perguntou.
"Apenas o que tu pediste" disse Siobhan. "Tu querias força para derrotar os teus inimigos."
"Mas tudo isso..." Kate começou. A verdade era que ela nunca tinha acreditado que tanto pudesse acontecer consigo.
"A magia pode tomar muitas formas" disse Siobhan. "Não irás amaldiçoar os teus inimigos nem irás pretender adivinhar o futuro deles numa bola de cristal. Não irás invocar relâmpagos ou convocar os espíritos dos mortos inquietos. Isso são caminhos para outros."
Kate levantou uma sobrancelha. "Isso é mesmo possível?"
Ela viu Siobhan encolher os ombros. "Isso não importa. Tu agora tens a força da fonte a correr em ti. Serás mais rápida e mais forte, os teus sentidos serão mais acutilados. Verás coisas que a maioria das pessoas não consegue. Combinado com os teus próprios talentos, serás formidável. Eu vou ensinar-te a atacar em batalha ou a partir das sombras. Vou tornar-te implacável."
Kate sempre tinha querido ser forte, mas ainda assim, ela ficou um pouco assustada com aquilo tudo. Siobhan já lhe havia dito que haveria um preço por tudo isso, e quanto mais maravilhoso parecia, mais ela suspeitava de que preço iria ser. Ela recordou-se do que sonhara, e ela esperava que o sonho não fosse um aviso.
"Eu vi algo" disse Kate. "Eu sonhei, mas não parecia um sonho."
"Parecia o quê?" perguntou Siobhan.
Kate estava prestes a dizer que não sabia, mas viu a expressão de Siobhan e pensou melhor. "Parecia a verdade. Espero que não, porém. No meu sonho, Ashton estava a meio de ser arrasada. Estava em chamas e as pessoas estavam a ser abatidas."
Ela quase que esperava que Siobhan se risse dela só por ela o mencionar, ou talvez ela estivesse à espera disso. Em vez disso, Siobhan parecia pensativa, assentindo para si mesma.
"Eu deveria ter esperado isso" disse a mulher. "As coisas estão a acontecer mais depressa do que eu pensava, mas nem eu consigo fazer nada com o tempo. Bem, não permanentemente."
"Sabes o que está a acontecer?" Kate perguntou.
Isso fez com que ela fizesse um sorriso que ela não conseguiu decifrar. "Digamos que eu tenho estado à espera de acontecimentos" respondeu Siobhan. "Há coisas que eu antecipei, e coisas que devem ser feitas em pouco tempo."
"E tu não me vais dizer o que se está a passar, pois não?" Kate disse. Ela tentou não mostrar frustração na sua voz, concentrando-se em tudo o que ela tinha ganhado. Se ela era mais forte e mais rápida agora, seria relevante que ela não soubesse tudo? Ainda assim era.
"Tu já estás a aprender" respondeu Siobhan. "Eu sabia que não tinha feito asneira ao escolher-te para aprendiza."
Ao escolhê-la? Tinha sido Kate a procurar a fonte, não uma vez, mas duas vezes. Tinha sido a única a pedir poder e a decidir aceitar as condições de Siobhan. Ela não ia deixar a outra mulher persuadi-la de que tinha sido de qualquer outra maneira.
"Eu vim até aqui" disse Kate. "Eu escolhi isso."
Siobhan encolheu os ombros. "Sim, escolheste. E agora, está na altura de começares a aprender."
Kate olhou em volta. Esta não era uma biblioteca como a da cidade. Não era um campo de treino com mestres de esgrima como aquele onde o regimento de Will a tinha humilhado. O que é que ela poderia aprender, aqui neste lugar selvagem?
Mesmo assim, ela preparou-se, colocando-se à frente de Siobhan e esperando. "Estou pronta. O que é que eu tenho de fazer?"
Siobhan inclinou a cabeça para um lado. "Esperar."
Ela foi até um local onde uma pequena fogueira havia sido colocada num poço, pronta para acender. Siobhan lançou uma labareda lá para dentro, sem se preocupar, com uma pederneira e aço, e, depois, sussurrou palavras que Kate não conseguiu perceber enquanto o fumo subia.
O fumo começou a virar-se e a contorcer-se, fazendo formas, enquanto Siobhan o direcionava da mesma forma que um maestro poderia ter dirigido músicos. O fumo fundiu-se numa forma que era vagamente humana, dissipando-se por fim para deixar algo que se parecia com um guerreiro de uma época há muito passada. Ele estava a segurar uma espada que parecia terrivelmente afiada.
Tão afiada, na verdade, que Kate não teve tempo de reagir quando ele a enfiou no seu coração.