Ela abriu a porta sem quaisquer tipos de preocupação, completamente determinada e contagiante com aquele seu jeito singelo de ser feliz consigo. Antes que partíssemos, Caio indagou desconfiado, enquanto me olhava, embora a pergunta tenha sido para Cecília:
- Hãa..., aonde vamos? Num mercadinho mesmo?
- Se for pra comprar comida, talvez. Compro em um lugar muito específico e talvez – ela começou a revirar sua bolsa em busca de alguma coisa, enquanto dizia: nunca tenham passado por lá, acho quase impossível. É só uma pessoa e as coisas de lá são uma fortuna, mas talvez seja exagero meu. De qualquer forma, reduzirá nossa viagem e poderemos comprar tudo que for necessário.
- Entendi..., bom, se não se importam, sinto segurança suficiente pra ir em casa.
- Acho que podemos fazer uma parada lá. – Retruquei enquanto fitava-o.
- Quero só pegar algumas coisas e acho que vocês estão bem. Será rápido e estamos protegidos pelo deus só – disse sarcasticamente Caio enquanto se distanciava mais de nós.
- Ok, - respondeu Cecília despreocupada com a atitude de Caio, quase como se estivesse segura por estarmos em pleno dia – só não esqueça de nos ligar, caso algo aconteça. O ponto de encontro é em casa. Uma pena que não vem conosco.
- Acho que não lamento por isso... – rebateu Caio com um leve ar de tristura e desdenho, partindo de uma direção oposta a nós.
Fomos sem Caio aonde Cecília ia, não era, de fato muito longe. Quando ela disse “chegamos” sondei todos os detalhes em busca de uma casa, um beco ou coisa assim para seguirmos, mas era só um terreno baldio repleto de entulho. Questionei comigo se estávamos esperando alguém chegar até nós ou..., como nos filmes, talvez, esperar alguém sinalizar que somos confiáveis e nos levar para algum lugar. Cecília se abaixou e posicionou 3 pedras, em distâncias iguais e empilhada do mesmo jeito, depois derrubou. Assim que ela fez isso, ouvi um barulho de alguns tijolos sendo arrastados, mas não enxerguei de onde vinha. Cecília segurou minha mão carinhosamente e “vamos logo”. Uma pilha enorme de entulhos, um pouco mais afastada das demais estava aberta e possibilitava nossa ultrapassagem, lá era escuro e só seguimos reto, mas o que era mais estranho, é o fato do corredor nunca se estreitar. Paranoicamente até temi o pior de deparar-me com Victor de repente e puxar-me para o inferno, mas não passou de paranoia ou medo. Andamos no breu ainda, até que Cecília parou e bradou “Sombra? O sol não toca aqui”, as luzes acenderam imediatamente, dando vida para uma enorme casa decorada com inúmeros tapetes, cortinas, runas estendidas (ou selos, não sei). Tudo era mágico e simplesmente vivo. No meio de tudo aqui, tinha uma cadeira e um homem sentado com as pernas cruzadas e vários anéis em suas mãos, vestido de preto com óculos escuros e com umas..., bolinhas estranhas na mão..., não sabia o que era. Na verdade, não sabia o nome. Ele as rodava sem parar sem dificuldade alguma. Ele bateu essas bolinhas duas vezes, fazendo as luzes piscarem e aparecer repentinamente na nossa frente, sem demonstrar espanto algum ou interesse em nós. Tomei um susto por ter péssimas experiências com isso, mas Cecília parecia acostumada com isso, então me apoiei em sua postura e aguardei até que ela falasse, mas o homem se antecipou:
- Quanto tempo, achava que não precisava mais fugir.
- Não preciso mesmo, Sombra... Nosso problema é outro – disse enquanto me fitava e usava-se como resumo do que se tratava. O homem apenas verificou rapidamente, de cima a baixo, respirou fundo e disse:
- Esse rapaz tem um cheiro esquisito...
- Ele é parte do que quero resolver. Vim aqui cobrar um favor que fiz anos atrás, lembra?
A feição do homem... do Sombra... Mudou de repente, reconhecendo a gravidade daquela cobrança. Embora dentro dessa mesma feição estivesse seu incômodo também. Ambos se penetraram com seus olhares sérios e destemidos, pareciam estar se comunicando, mas não podia interpretar nada. Tudo que soube de Cecília estava dentro daquele bar. Depois da breve pausa, Sombra bateu aquelas bolinhas novamente e fomos a um vasto local de variedade – desde amuletos a ingredientes que nem podia imaginar sua utilidade.
Cecília disse o que precisava além da pedra do sol em **, runas e selos de p******o e banimento, dentre outras que não puder entender. O homem só concordou e desapareceu, deixando-me com Cecília. Desfrutei do momento de espera para conversar com ela sobre algumas dúvidas, ou..., miseravelmente descobrir mais sobre ela e como aquele homem a tratou como se tivesse lidado ao seu lado com coisas dessa magnitude. Entendo o fato dela estar ligada a isso, mas incomodava o fato de estarmos ligados só por causa de um problema em comum, mais nada! E aquilo ficava mais estranho, mas antes de perguntar algo dessa magnitude, tinha outra curiosidade sobre o Sombra:
- O que são aquelas bolinhas?
- São chamadas de Bolas baoding, e não são mágicas. Ela é a única coisa que liga ele com esse mundo. – disse enquanto olhava para o nada.
- Entendi, então ele não é daqui?
- Mais ou menos...
- Hmm... – cruzei meus braços e esfreguei, com uma das mãos, meu cotovelo um pouco nervoso, tomando coragem para perguntar o que realmente queria. Engoli a seco e indaguei quase gaguejando:
- Ah..., tipo... Você nunca disse, não que eu esteja obrigando! De forma alguma, mas nunca disse sobre você e Os Olhos Mortos.
Cecília exibiu aquele seu sorriso esbelto mais uma vez, vislumbrava todo aquele são, mais que as cortinas e retrucou:
- É estranho contar isso, mas entendo como se sente..., tipo como se fossemos estranhos, como se sacrificasse por alguém imprevisível.
- Nem tanto isso, acho que jamais isso iria interferir na minha vontade de salvar alguém. Ver alguém morrer e não agir por medo, é pior que a morte, a meu ver.
- Entendo... – objetou demonstrando peso em suas palavras, parecia adentrar um lar de desavenças das quais nunca lidou bem, das quais nunca pode entender e enfrentar como enfrenta tudo hoje. Logo, prosseguiu: Quando vi pela primeira vez Victor, foi estranho. Era noite e ele não falou nada, parecia esperar por algo, ele só estava à espreita. Estava de carro com meus pais, quando de repente..., acordei com ele observando tudo em volta. Não estava mais no carro, eu estava em mesa com uma bela vista para o jardim. Perguntei a ele sobre meus pais e ele simplesmente disse que haviam morrido e foram para algum lugar que nenhum pensamento escapa. Então disse a ele que faria de tudo para ir e dizer pelo menos um adeus, pela última vez; mas ele disse: como um morto oferece tudo se não tem nada? Então disse que estaria disposta a servi-lo.
Fiquei embasbacado com que fui bombardeado, quer dizer...! Cecília estava morta ou Victor fez acreditar, por um segundo, naquilo? Não me precipitei, deixe-a continuar e perguntei:
- Você..., morreu?
- Não! Claro que não! Ele só quis me usar. Servi ele por anos, aprendi de tudo sobre ocultismo, mas havia coisas que ele nunca se atreveu ensinar, tipo as fraquezas ou as coisas que ele fazia.
- E por que ele escolheu você?
- Não sei..., mas a melhor coisa foi quando fugi finalmente e roubei seu grimório – disse enquanto emanava com seu sorriso de triunfo –, só assim aprendi sobre os selos, runas que protegiam contra qualquer coisa. Também tem outras informações sobre Espreitadores, que são os espíritos oportunistas. Eu estava com dois grimórios quando fugi de sua toca com o mesmo pingente que meu pai me presenteou, mas o derrubei no caminho.
- Então o que exatamente ele é? Digo..., é fato que ele possui vasto conhecimento sobre muitas coisas, tendo em vista o que você disse agora. – perguntei ainda surpreso.
- Não sei, como eu disse..., certas coisas eu não tive acesso, mas aprendi o que pude.
Cecília segurou minhas mãos e olhou profundamente em meus olhos, trazendo ondas de emoções com escalas que eu m*l pude filtrar. Meu coração disparou e meus lábios congelaram, tive a sensação de borboletas em meu estômago e tão subitamente... nada mais importava em volta, tudo resumia-se naqueles olhos cristalinos esverdeados. Suas palavras adiante eram traçadas com inúmeras fantasias. Imaginava sim, mil vez, milhões de vezes além do lapso de vida, daquela beldade; o maior conforto que poderia:
- Sei que está tudo tão difícil, mas espero que acredite no poderemos fazer. Desde aquele momento, senti que podia confiar em você para lidar com ele e com tudo até..., - Cecília fez uma breve pausa, respirou fundo e disse – você lembra quem eu fui antes, isso faz eu ser mais forte, porque mesmo com medo, você avançou. Quase perdeu sua vida, mas em momento algum foi egoísta, até quando sua vida estava em jogo. Obrigada por acreditar mesmo quando tudo ficou de cabeça para baixo, longe da esperança e de tudo que aspirava. Seja como for, espero que possamos sair juntos disso.
Eu apenas sorri congelado buscando quaisquer palavras além de um pobre obrigado, mas tudo era tão pequeno quando eu pensava nela agora. Era como se ela me entendesse, não demorou muito para ela me abraçar como no começo do dia. Novamente pensei “estou em casa” e retribui o abraço, descarregando tudo que perturbava minha mente. Não ousaria, nem que custasse minha paz, causar uma calamidade do tipo que tirasse aquilo de mim. Não importa quantas vezes tivesse que fazer isso, mas me sacrificaria sem parar só para ter isso.
Cecília desfez o abraço e fez um semblante diferente, em busca de algo. Ela olhou para um lado e outro, até para cima e disse:
- Ele devia ter voltado já..., isso não demora tanto.
- Bom..., ah..., não tenho experiência com ele, mas podemos buscá-lo.
- Aqui é um labirinto, nunca andei por aqui, mas ele falou alguma coisa sobre cheiro, certa vez...
Não sei por que, mas tive uma sensação estranha, e não era boa. Não era possível Os Olhos Mortos atacar-nos agora, mas ainda sim estava com medo disso porque o mais improvável, como forças sobrenaturais, já estava acontecendo e estava nos caçando sem parar. O que impediria espíritos de aparecer por aí, em qualquer lugar, mesmo que em pleno dia? O medo parecia irracional quando nada era real, mas quando tudo se mistura dificultando distinguir isso, era sufocante.
Andamos a passos largos direto, sem fazer curvas, por ora; em busca de alguma coisa que servisse como ponto de referência. Andamos rápidos, e ainda mais rápido, entrando naquela variedade de cortinas e tapetes iguais, sem mudar nada! Conforme andássemos, parecíamos voltar sempre para o mesmo lugar com os mesmos artefatos. Corremos então futilmente em frente sem parar, batendo nas cortinas! Na mesma d***a de cortina. Paramos um pouco para recuperar o fôlego, olhamos em volta de novo, nos fitamos:
- Estamos perdidos?
- Não sei, quero acreditar que não. d***a! Por que não consigo lembrar?
Ficamos calados pensando em alguma solução, olhamos mais uma vez em volta desesperados, até torcendo que tivesse acontecido só um imprevisto que ele não pôde lidar. No meio do silêncio, senti um calafrio e escutei alguns cochichos, quase inaudíveis da direita – com a mesma cortina. Quando Cecília estava prestes a falar, fiz um sinal com mão a interrompendo e segui os cochichos estranhos e misteriosos com ela. Andamos lentamente para que pudéssemos escutar atentamente de onde vinham os cochichos sinistros, abafados e acompanhado de um vento que dava calafrio. Dessa vez, o som e as sensações vinham da esquerda. Corremos até a esquerda e sentimos violentamente uma sensação carregada com cochichos de inúmeras vozes, algumas mais grossas, outras mais finas e alguns ranger também. Dessa vez, a direção era direita. Escutamos choramingo, vozes atormentadas gritando “eu não sabia..., eu não sabia”, “por favor, por favor”, o clima ficava mais pesado e sentíamos essa pressão decair conforme seguíamos a trajetória, perturbava nossa paz causando sensações de desespero, angústia, insegurança e agonia. Me sentia sufocado e até perdido, as vozes gritavam de dor como se estivessem queimando. Senti o cheiro das chamas e comentei com Cecília se era esse o cheiro, ela retrucou:
- Agonia, desespero e calamidade são labaredas que crescem repentinamente, surgem do nada e levam tudo. Sinto o cheiro dos infames, dos inocentes que clamam todo santo dia, se é que isso seja santo, seu benfeitor: o libertador. Lembrei o que ele havia dito..., os gritos de agonia, as chamas que purificam é o caminho!
- Acho que é meio tarde para lembrar, mas vamos!
- Ele deve ter usado algum selo para que eu esquecesse. Vamos!
Seguimos até de onde vinham os gritos que ecoavam mais e mais, demonstrando uma dor aparentemente indescritível. Quem berrava sentia a pior das dores e não tinha, e só crescia. Os gritos ficavam mais alto e entrava em nossas mentes afagando todos nossos pensamentos que nos afastava daquele grito. Quando finalmente parecíamos ter alcançado, tudo de repente parou, apagou deixando a gente em completo breu, e escutamos os cochichos novamente. A visão não podia ser mais assustadora, terrível! Meus olhos queriam ter sido adocicados com a beleza de Cecília novamente, mas não podia deixar de focar na visão do inferno que permeava minha humanidade e sanidade. Eram corpos estirados e estendidos acima, ainda frescos e ensanguentados..., algemados, dilacerados. Eram várias cóleras a mostra, expurgando (se algum dia tivera) qualquer vestígio de sanidade. Mas Cecília ficou ainda mais perplexa quando viu um homem vestindo-se de preto, completamente pálido, como se estivesse morto e com garras cobertas pelas trevas, segurando seu amigo querido e nosso confiável comerciante... O Sombra.
As bolinhas estavam jogadas no chão com a bolsa, com os materiais saindo como alguns já estirados por lá. Seu braço se movia de uma forma estranha, parecia drenar O Sombra, enquanto ele agonizava e golpeava inutilmente para soltá-lo. Quando Cecília correu para apanhar o ** da pedra do sol, a criatura virou rapidamente, expondo sua boca costurada e aqueles malditos olhos escuros! O desgraçado matou nossa única esperança? Como sabia onde contra-atacar? E o pior: talvez agora estejamos encurralados e só podíamos escolher pouquíssimas coisas. O maldito desumano somente nos fitou, fez os olhos brilharem e emitiu um som para dentro de nossas mentes, e era sua voz amaldiçoando, conjurando com uma única palavra e nos atirando para a mesma sensação que tivemos naquele dia... o afogamento, o vazio e o perdido. A voz adentrou calmamente, em alto e claro som dizendo: Afoguem-se!