A trinca que serpenteia o ventilador de teto retribui o meu olhar, silenciosamente me acusando de ter atingido o ápice de uma obsessão que sempre me faz querer antecipar uma tragédia iminente. Sou obcecada por deformidades em estruturas até onde sou capaz de me lembrar.
As rachaduras são para mim um nítido sinal de instabilidade, refletindo uma imagem indireta de mim mesma.
Todo ser humano possui um tipo de rachadura interna. Pode ser uma lembrança r**m, uma ambição que o faz agir de maneira inconseqüente, até mesmo a simples mania de olhar o mundo através de olhos pessimistas. Independentemente das razões, ter algum tipo de pensamento que contradiga o que a sua imagem externa costuma passar é sim considerado um defeito. E os defeitos são os principais responsáveis pela nossa queda.
A minha mente funciona com uma enorme rachadura bloqueando a conexão entre memórias distintas. Alguns anos atrás alguém quebrou o espelho que permitia que as minhas lembranças refletissem diante dos meus olhos e, possivelmente, tentou consertá-lo usando uma fita adesiva. A rachadura que ainda permanece em mim é estreita e percorre toda a extensão do meu espelho, quebrando as conexões que são necessárias para que eu entenda quem eu sou e por que estou aqui.
Consigo me lembrar de ter um pai, uma mãe e uma casa confortável, mas não consigo me lembrar quando exatamente tudo foi às ruínas. Essa é uma parte que foi afetada pela lacuna em minha mente. Ao mesmo tempo em que sei o que houve, em que sinto as dores pelo meu corpo tentarem me arrastar de volta para aquelas lembranças, sinto que é melhor não fazer nada. Sinto como se mesmo que me lembrasse, nada pudesse ser feito.
Essas dúvidas batem de frente com a minha certeza e é nos momentos de estresse que sou exposta. Agora entendo o que esses sentimentos contraditórios significam, mesmo que nem sempre tenha sido assim.
Tenho fragmentos que alteram conforme tento decifrá-los. Isso me impede de dizer com clareza se o que me lembro é real ou apenas mais uma alucinação. Sei que logo aos meus doze anos de idade eu não era uma criança normal. Ouvir vozes, perder memórias recentes e se esquecer de si mesma não era algo com que a sociedade no geral sabia lidar.
Fui inicialmente diagnosticada com Amnésia Seletiva e isso fez com que as pessoas sentissem a necessidade de me ajudar. Somente quando perceberam aos poucos que o problema era maior do que a minha expressão infantil e perdida demonstrava, eles passaram a temer me ajudar.
Antes as vozes diziam que os calmantes que me forçavam a tomar as machucavam. Elas lutavam contra a minha vontade de retornar à sanidade, tornando-me tão violenta quanto seus comandos salpicados de veneno. No começo eu as ouvia como se alguma parte dentro de mim me aconselhasse a fazer ou não alguma coisa, depois, quando percebi que a dor era menor se eu me fechasse para o mundo e deixasse que suas vozes dominassem completamente as minhas escolhas, elas ganharam toda a confiança de que precisavam e eu imediatamente me arrependi.
Eu ainda não era capaz de falar. Isso é uma das únicas coisas que posso me lembrar sobre a minha infância. Algumas pessoas dizem que isso era uma reação muito comum ao meu trauma. Minha mente estava tão perturbada que unir letras e formar palavras era algo que ia além da minha capacidade atual. Eu não sabia o que tinha acontecido, não sabia por que me encontraram suja de sangue e coberta por uma grotesca camada de sujeira dentro de um túnel abaixo de uma estrada abandonada, e, principalmente, não conseguia entender como aquilo foi acontecer.
Meu pai tentou falar comigo. Ele insistiu para que eu dissesse alguma coisa, qualquer coisa. Eu não conseguia. Tudo o que saia de minha boca eram murmúrios e um som rouco parecido com um engasgar. Ninguém conseguia me ouvir.
Eles me contaram o que pensavam ter acontecido e eu não era capaz de guardar suas palavras em lugar algum de minha memória. Estava sempre me perguntando o que estava acontecendo e por que as pessoas pareciam tão preocupadas comigo.
Eles perceberam, um pouco tarde demais, que eu não tinha Amnésia Seletiva alguma; eu não esquecia apenas aquilo que queria. Minha mente simplesmente era incapaz de armazenar informações e quando eu conseguia esforçá-la ao máximo, as palavras e cenas se fixavam e se apagavam em questão de horas. Eu sabia que elas se mantinham em algum lugar, mesmo assim era incapaz de alcançá-las.
Um dia quando eu acordei de mais um pesadelo com lugares apertados e fedidos, suando frio e com os cabelos pregados na testa de tanto me debater em silêncio, saltei da cama e fugi do quarto. As sombras da mansão silenciosa me davam medo e permanecer sozinha em meu quarto era ainda pior. Corri até a cozinha, tropeçando em meu pijama, e fiz menção de abrir a geladeira quando pensei ter ouvido uma risada. Minha mão congelou no ato e meus olhos se arregalaram. Eu podia jurar, perante qualquer autoridade, que estava certa do que ouvira e me recusava a virar e confirmar o meu juramento.
Quando a risada ecoou através das paredes da cozinha e sumiu, respirei fundo e finalmente abri a geladeira. Enquanto me servia com um copo de leite, deduzi que havia imaginado aquele som. Afinal, durante o meu pesadelo tive a certeza de ter ouvido aquela mesma risada, mas ao contrário dessa, aquela sempre vinha acompanhada de um objeto quente que tocava a pele do meu colo. Mesmo depois de acordada eu sempre podia sentir a queimadura. Meu pequeno seio esquerdo ardia e eu sentia a ferida redonda que havia sobre ele latejar, mesmo horas após aqueles pesadelos.
Deixei o copo na bancada e guardei a caixa de leite na geladeira. Não escutei som de passos. Não escutei qualquer porta se abrindo ou fechando, mas as vozes altas e exasperadas de uma pequena multidão aproximaram-se e me rodearam como um grupo de valentões.
— Ter medo do escuro é patético.
— Você deveria morrer, pequena Abigail.
— Perca o medo do escuro. Mate-se!
Soltei um grito, sem qualquer controle sobre a minha voz, e me virei assustada. Não havia nada. Ninguém que pudesse ter dito qualquer coisa e eu ainda podia ouvir as risadas. Elas se multiplicavam, enchiam a cozinha e faziam a minha cabeça vibrar. Eu me encolhi, pressionando com força as duas mãos em minhas orelhas. Ainda podia ouvi-las claramente gritando obscenidades, incitando-me a pegar facas da cozinha, rindo, e tinha certeza que mais alguém logo apareceria para acabar com a confusão. Obviamente, isso não aconteceu.
Lembro-me de bater levemente a cabeça no chão frio achando que havia pegado no sono. As lágrimas secando-se aos poucos enquanto eu me endireitava e procurava pelas vozes. Elas haviam sumido, e eu, ainda afetada pelos medos de uma criança, subi o mais rápido que pude pelas escadas e me enfiei embaixo de minhas cobertas. Cobrindo-me até onde podia, perguntei-me como ninguém poderia ter ouvido todo aquele berreiro, ao mesmo tempo em que rezava para nunca mais ter de ouvi-lo novamente. Contrariando a minha fé, as vozes voltaram no dia seguinte.
Eu ainda estava assustada com o ocorrido da noite anterior, então, só por precaução, antes de descer até a sala peguei um ursinho dentro do baú em meu quarto e o abracei como se minha vida dependesse daquilo. As vozes apareceram enquanto eu assistia os meus desenhos e me disseram — com palavras inicialmente calmas — que só havia um jeito para acabar com a angústia que meu pai sentia. Para fazer com que ele parasse de gastar seu dinheiro pagando policiais. Para que o meu pai parasse de tentar encontrar quem havia destruído a única lembrança viva que ele tinha de sua esposa morta.
Você tem que morrer, as vozes disseram mais alto quando eu fingi não tê-las ouvido. Você nasceu para desgraçar a sua família! Repetiram aos berros.
— Parem de gritar comigo! — Berrei de volta, cobrindo minhas orelhas com as duas mãos. Aquela fora a primeira vez em seis meses que eu falara alguma coisa, mas, infelizmente, não foi a última em que as vozes apareceram.
Quando as pessoas reais tentavam me fazer falar, tudo o que eu conseguia era gritar. As vozes se tornavam cada vez mais altas e eu não podia escutar o que as pessoas reais diziam. Eu tinha que gritar com aqueles que gritavam comigo, tinha que mandá-los embora.
As alucinações se tornaram mais freqüentes, os pesadelos se tornaram uma rotina e meu pai parecia cada vez mais desesperado. Ele nunca me contava sobre a morte de minha mãe, ou talvez tenha contado, eu não me lembraria de qualquer forma. Estávamos sozinhos. Ele estava definhando, e eu enlouquecendo.
Naquela época eu ainda não tinha consciência da minha loucura. As pessoas das minhas alucinações eram tão reais quanto aqueles que me faziam perguntas. Eu gritava com todos. Queria que todos morressem e me deixassem em paz. Algumas vezes chegava a desejar a minha própria morte.
Havia alguns dias em que as vozes sumiam.
Geralmente os dias em que me mandavam para a sala de uma Psicóloga Infantil e ela me fazia perguntas. Constantemente eu me sentia atordoada e minha cabeça vibrava. Era como se uma nuvem de borboletas voasse dentro do meu crânio. Eu podia ouvir o farfalhar de suas asas tão real quanto podia sentir a dor que seus movimentos causavam contra as paredes do meu cérebro. Quando a dor passava, eu me pegava chorando, ou rindo, ou gritando, ou corria para o canto mais escuro da sala e me encolhia em uma bola. A Psicóloga tentava me acalmar através de palavras, mas eu ouvia aquela constante voz dizer: "não confie nela", e eu não confiava.
As vozes e todas aquelas dores de cabeça que alteravam o meu humor eram fortes demais para que eu fosse contra elas. Os calmantes que me davam naqueles primeiros meses para controlar as minhas crises de humor tinham o mesmo efeito que balinhas de menta. Elas riam da minha tentativa de abafar seus sussurros e falavam m*l de mim com mais freqüência. Eu sentia a minha cabeça a ponto de explodir de dor e pela consciência de que havia outras pessoas ali dentro. Pessoas que se moviam e observavam a minha vida através dos meus próprios olhos.
Então, assim como em um macabro conto de fadas, chegara o dia em que meu pai aceitou o conselho de um de seus amigos mais próximos sobre uma possível internação, e a sua fé em minha recuperação foi dissolvida de vez.
A fachada sombria do prédio acinzentado chamado de St. Carolin por si só deixava bem claro que não havia vida além do portão com grades de ferro. Situava-se em uma colina rodeada por árvores e afastada da civilização. Um lugar perfeito para aqueles que não podiam conviver com pessoas comuns. Fiquei extremamente chocada ao perceber que antes mesmo de entrar na recepção, já me sentia como uma paciente interna.
A clínica não possuía muitos seguranças. Talvez houvesse doze deles naqueles primeiros anos. Eles não podiam chegar perto dos pacientes de qualquer maneira. Seu dever incluía proteger os portões de possíveis fugas e manter a ordem quando alguma confusão estivesse acontecendo. Eles carregavam pequenos aparelhos que davam choque, embora apenas suas carrancas fossem o bastante para intimidar e afastar os loucos.
Eu fiquei atenta a cada uma das portas, entradas e saídas da clínica. Percebi no primeiro momento em que meu pai me acompanhou até a recepção que a maioria das portas era automática, apenas uma ou outra eram portas que usavam o velho sistema de chaves. Disseram para o meu pai que o travamento das portas automáticas eram uma precaução quanto às quedas de energia que costumavam ser freqüentes em Manhattan.
Uma vez sem energia para funcionarem os cartões com códigos, as portas não se abririam e nem se fechariam até que a energia fosse restabelecida. Os pacientes não ficariam totalmente no escuro graças às luzes de emergência, mas as portas modernas preveniriam qualquer tentativa de fuga, até que o gerador fosse ligado.
No andar térreo, onde entramos por uma porta branca que abre em duas direções diferentes, encontramos inicialmente a recepção. É um grande círculo onde costuma haver duas enfermeiras jovens que digitam na velocidade da luz em seus computadores.
Atrás do círculo é possível ver dois corredores amplos com capacidade para oito fileiras indianas de pessoas. O corredor esquerdo é plano e leva até uma escadaria. O direito possui portas que podem levar às salas de recreação, a porta para o porão, o refeitório, a enfermaria ou aos banheiros.
São três banheiros neste andar. Um para garotas, outro para garotos e um para os visitantes. Também soube naquele mesmo dia que apesar de objetos metálicos serem proibidos, cada banheiro possui um espelho. Por essa razão, nenhum paciente pode entrar sozinho, não importa o que precise fazer.
O primeiro andar é reservado para os médicos e os enfermeiros. Lá estão as enormes salas psiquiátricas com banheiros individuais. Metade da equipe médica trabalha em plantão, por isso o espaço para eles é indiscutível e mais do que necessário.
O segundo andar é onde fica a ala infantil. Aquela é a ala mais silenciosa. Eu fiquei naquele andar apenas por poucos meses, o suficiente para observar os hábitos contrários daqueles que realmente são considerados loucos. As crianças nunca se misturam com os demais. Possuem seus próprios horários para o banho, alimentação, e usam uma sala de recreação própria para atividades infantis.
No terceiro andar estão aqueles que apresentam algum tipo de confusão mental, mas nada que possa ser tão grave. Geralmente são pessoas que tem curtos lapsos de memória e não sabem como chegaram ali. Como a instituição é mantida pelo governo, é dever do estado abrigar qualquer um que apresente qualquer tipo de problema mental até que os seus familiares sejam encontrados e as medidas legais tomadas.
No quarto andar estão aqueles que não são verdadeiramente loucos, só que apresentam sintomas que podem prejudicar apenas a si próprio. Geralmente são aqueles com Ninfomania, Depressão, problemas cerebrais que os fazem perder completamente o senso, ou que possuem parentes que já se cansaram de suas crises de humor e que apenas consideram seus comportamentos inadequados para o convívio com a sociedade.
E o quinto andar, a última ala, estão aqueles que aos olhos dos médicos são completamente insanos. Os Bipolares, Esquizofrênicos, Psicóticos, e aqueles que possuem Transtorno de Personalidade. Eles são considerados perigosos tanto para os outros, quanto para eles próprios. Há uma câmera no canto de cada um dos quartos do quinto andar, assim como um segurança armado com uma arma de choque em frente à porta de metal que separa a ala das escadarias.
No último andar — um lugar proibido para qualquer paciente — estão as salas de controle das câmeras, as salas de isolamento e uma última escadaria que leva ao topo do prédio. Eu nunca fui ao terraço, mas sei, olhando pelo jardim, que a queda dali seria incrivelmente f**a. Nem mesmo a grama sempre muito bem aparada seria capaz de amortecer o impacto.
Achavam que eu estava distraída demais para ouvir, só que, na verdade, eu mantinha meus ouvidos atentos, sentindo que precisava me manter alerta. Meus olhos focaram em uma porta estreita no saguão e escutei o enfermeiro dizer que era onde o gerador ficava. Um dos poucos lugares com portas comuns e que os pacientes jamais se atreveriam a entrar. A maioria deles tinha medo de lugares fechados. Parecia uma fobia que todos ali adquiriam com o tempo, inicialmente eu não tinha entendido a razão.
A razão para aquela fobia eu descobri uma semana depois da minha internação. Foi quando subitamente me senti tão traída e abandonada pelo meu pai que me tornei agressiva ao ponto que eles precisaram me sedar e me levar para o Isolamento. As paredes brancas e o chão acolchoado incitaram um ódio que eu nunca senti dentro de mim. Eu não conseguia diminuir os meus berros e eles ecoavam pela minha garganta sem que eu tivesse qualquer chance de pará-los.
Os psiquiatras precisaram de duas semanas lidando com as minhas mudanças de humor, as confusões mentais, os esquecimentos e os berros em resposta às vozes, para suspeitar que eu tivesse Bipolaridade agravada pelas minhas Alucinações Auditivas, além da própria perda de memória. Pensando ter descoberto o meu problema, os médicos partiram para o tratamento pelo qual os pacientes Bipolares passavam.
Os remédios controlaram as vozes por um pequeno intervalo de tempo, mas abriram uma caixa que já estava entreaberta em minha cabeça. A mesma caixa que abrigava aquela nuvem de borboletas que vez ou outra voava pelo meu crânio.
Continuei os meus estudos exatamente de onde parei, graças aos professores que todos os dias trabalhavam na clínica para ajudar as crianças. Ler era a minha diversão favorita, mesmo que houvesse dias em que adorava brincar com carrinhos ou montar castelos de lego. Às vezes eu acordava durante alguma tarefa para testar a minha capacidade cerebral sem saber o que estava fazendo ali, outrora sentia meus lábios se moverem formando palavras que eu mesma não conseguia entender o que significavam, ou então, sentia meu corpo encolher e os acontecimentos seguintes só faziam sentido quando eu já estava sendo sedada por uma enfermeira.
Havia dias que eu passava todo o tempo "dormindo" e quando voltava, descobria que havia conversado com outras pessoas, me tornado próxima de malucos que constantemente urinavam na própria roupa ou até mesmo das enfermeiras que não eram carrancudas.
Antes do meu aniversário de dezenove anos, tive a minha primeira consulta com um Psiquiatra chamado Peter Conway. Lembro-me de entrar em sua sala, no momento seguinte minha visão ficou turva e a pressão em minha cabeça me fez desmaiar. Acordei ouvindo-o me chamar, perguntando se queria que ele repetisse a sua última pergunta. Fiquei em pânico, embora por fora parecesse apenas alguém confusa e nada assustada.
Lembro-me do olhar cheio de pena que o doutor lançou em minha direção, enquanto conferia em um bloco de notas possíveis anotações sobre as perguntas que aquela outra pessoa respondera. Nossas sessões continuaram com a presença de um Psicanalista — cujo nome sou incapaz de me lembrar — e o doutor Conway se tornou o médico responsável pelo meu caso.
Em março de 2014, quando faltavam sete meses para que eu completasse vinte anos, o doutor Conway me chamou em sua sala. Ele anunciou, com certo pesar em seu habitual tom de voz tranqüilo, que o meu real problema em relação às minhas "fugas" era chamado de Transtorno de Personalidade Múltipla, ou também conhecido como Transtorno Dissociativo de Identidade. Aquilo explicava as minhas mudanças de comportamento, a mania de me sentir mais nova ou mais velha quando não deveria, e os pensamentos confusos que corriam pelo meu cérebro quando alguém se dava ao trabalho de perguntar como eu estava.
O que parecia ter sido a solução de um problema, foi apenas o começo de uma vida cheia de negociações e súplicas com as vozes.
As minhas personalidades não nasceram e não se formaram. Elas sempre estiveram lá. Sempre me incitando a fazer algo. Impedindo-me quando pensavam que era errado, dizendo através de pressentimentos o que eu devia fazer. Eu não escolhi seus nomes, suas idades, suas aparências e muito menos as lembranças que tornavam seus comportamentos ora feliz, ora depressivo.
Quando elas decidiram surgir completamente para mim, imediatamente passei a reconhecê-las através de vozes, manias e sensações diferentes. Era como se eu soubesse quem eles eram antes mesmo de me conhecer de verdade.
A primeira personalidade a aparecer foi Annie. Foi ela quem esteve na minha primeira consulta com o doutor Conway. Annie é uma adolescente com os hormônios à flor da pele. Está sempre rindo, dançando ou interagindo com alguém. Sua alegria sempre me deixa desconfortável ao acordar e perceber que fiz amizades novas.
Isaac tem sete anos. Ele gosta de brincar de carrinhos e comer biscoitos de chocolate. Sempre que ele está por perto, sinto meu corpo encolher e minhas bochechas ficando maiores. Isaac sempre vê o lado bom nas coisas e, assim como Annie, gosta de fazer novos amigos.
Emma é uma pré-adolescente triste e revoltada. Não sei qual o problema com ela. Sinto uma tristeza súbita sempre que suas lágrimas escorrem pelo meu rosto. Tenho medo dela. É como se eu soubesse que a sua instabilidade emocional fosse me causar problemas, mas não pudesse fazer nada para impedi-la.
Emily nunca diz nada, apenas chora. m*l posso ouvir minha própria respiração com suas lamúrias e gemidos de dor aos meus ouvidos. Apenas reconheço sua presença quando tudo o que mais quero no mundo é me encolher e chorar.
Lauren é a minha personalidade confiante. Foi Lauren quem criou uma espécie de caixa em minha cabeça e é lá onde estão guardadas as minhas lembranças boas. Estou sempre com vontade de enrolar os meus cabelos e mostrar um sorriso bonito quando ela "sai".
E, por último, há Santana. Uma garota sincera e inteligente, que perde todo o seu mérito por adorar se gabar disso. Nos momentos de dúvidas ou distrações, é ela quem aparece. Hoje sei que seu hobbie favorito é montar castelos de lego e ler até que seus olhos peguem fogo, mas antes me irritava com a sua arrogância para provar o seu conhecimento. Nós compartilhamos o sentimento de vazio. Quando Santana está por perto minha mente divaga em perguntas das quais não tenho respostas.
Há outros para vir. Eu sinto-os movendo-se lentamente em busca de espaço. Tenho medo e ao mesmo tempo curiosidade. O doutor Conway me convenceu de que as minhas personalidades são partes de uma habilidade. Ele não considera a dissociação uma doença, muito pelo contrário. O fascínio por ter descoberto o problema que seus outros colegas de trabalho foram incapazes de fazer, fica estampado em seus olhos a cada consulta que temos. Mesmo que tudo isso seja verdade, há uma parte de mim, uma parte bem pequena que anseia por respostas. A parte que não pergunta "Por quê?" e, sim, "Como?".
Havia dias em que tudo me incomodava. Até mesmo a respiração dos meus amigos malucos. Eu gritava com eles e com os enfermeiros que insistiam em me olhar com deboche. Tentava arremessar coisas, sabendo que a maioria delas estava pregada ao chão. Tentava desesperadamente fazer com que as vozes sumissem, o que é claro, nunca passou de uma tentativa. Mesmo tomando meus remédios, mesmo participando de todas as atividades ridículas da sala de recreação, elas ainda estavam lá, espreitando sobre o muro que elas mesmas ergueram em meu cérebro. O muro que ainda me impede de me lembrar momentos preciosos de minha vida.
Eu cresci dentro de paredes de azulejos brancos e de chão acolchoado. Cresci ouvindo as vozes se tornando constantes, suas aparências variando conforme os meus medicamentos eram alterados. Interpretando os gemidos e berros dos meus amigos malucos numa falha tentativa de abafar aqueles que reverberavam em minha cabeça. Doze anos se passaram e só faz alguns meses desde que os gritos se tornaram silenciosos, as alucinações se tornaram raras e as lagrimas diminuíram. Eu gostaria de dizer que toda aquela tortura mental me tornara forte, mas seria uma mentira. Eu ainda sou tão vulnerável quanto uma criança de doze anos de idade, mesmo que esteja prestes à completar vinte e quatro.