Seis anos depois...
Jason
Conforme o carro avança pelas ruas de Londres, as luzes da cidade se refletem nas janelas, borradas pelo ritmo veloz, criando um jogo de sombras que parece dançar ao meu redor. Encosto no banco, o corpo pesado como se cada célula estivesse exausta, e fito a cidade com um olhar vazio. O brilho frenético de Londres, tão vibrante e cheio de vida, apenas destaca ainda mais o abismo que carrego dentro de mim.
Acendo um cigarro com dedos trêmulos, e o gosto amargo da fumaça invade meus pulmões. É um alívio breve, quase ilusório, mas no momento, é tudo o que consigo suportar. A voz do médico ainda ecoa em minha mente como um sino sombrio: hipertensão arterial. Estafa. O estresse, ele disse, está cobrando seu preço.
Penso na ironia disso tudo é que justo agora, quando finalmente alcancei o cargo de diretor comercial na Tecno Electronics, uma conquista que parecia ser meu único propósito nos últimos anos, meu corpo decide me trair. Anos de trabalho incessante, escalando posições, e aqui estou, exausto e vazio.
E então, como uma onda gelada, o pensamento que tento evitar toma forma novamente. O acidente.
Naquela noite fatídica, eu estava com Jake. Era uma sexta-feira. Nós voltávamos de uma festa em Londres. Segundo Eleonora, testemunhas disseram que o carro perdeu o controle em uma curva perigosa. Jake estava dirigindo, como sempre fazia, porque eu simplesmente não conseguia enfrentar meu trauma. Desde pequeno, depois de quase sofrer um acidente com meu pai ao volante, a estrada sempre foi um monstro que eu evitava.
Quando acordei semanas depois, em um quarto de hospital, a realidade parecia distante, como se eu estivesse vivendo a vida de outra pessoa. Nem meu próprio nome me pertencia mais. Olhar no espelho foi como encarar um estranho.
Então Eleonora apareceu, com o rosto carregado de alívio e dor. “Eu sou Eleonora, sua irmã,” ela disse, e as palavras trouxeram um fio de conforto, mas também de pavor. Foi ela quem me contou sobre a morte de Jake, sobre o vazio que ele havia deixado — e sobre o meu.
Na noite em que voltei para casa, pedi a Eleonora um espelho. Ela hesitou, mas cedeu. Quando segurei o pequeno objeto em minhas mãos e encarei meu reflexo, não encontrei nada que me conectasse a quem eu deveria ser. As cicatrizes no rosto, os olhos fundos, o cabelo já com fios grisalhos — tudo parecia pertencer a outro homem, um personagem que não era eu.
Pouco tempo depois, voltei a Portsmouth. Eleonora tentou reconstruir meu mundo, me dando um contexto, um passado: “Jake era noivo de Jéssica, e você namorava Sara. Vocês dois dividiam uma casa aqui.” Mas nada disso parecia real. Apenas histórias contadas por alguém que me olhava como se tentasse enxergar quem eu costumava ser.
Quando Sara reapareceu, eu soube que não seria fácil. Ela queria resgatar o que havíamos tido, reacender a chama, mas como eu poderia fingir?
— Sara — comecei, a voz carregada de hesitação, procurando palavras que pudessem aliviar o golpe —, o acidente mudou tudo. Não posso continuar de onde paramos.
Os olhos dela se encheram de dor e incredulidade.
— Conheceu alguém naquela festa? Ou foi no hospital?
Neguei com um gesto, sentindo o peso das palavras que estavam por vir.
— Não é isso. Não tem outra mulher. Só… só não sou o mesmo homem que você conheceu.
Ela respirou fundo, como se estivesse tentando reunir forças para aceitar o impossível.
— Então você não me ama?
Cada palavra dela era como uma faca, cortando o pouco que ainda restava de mim.
— Não. Não amo.
O silêncio que se seguiu foi insuportável. Ela levantou-se, as lágrimas deslizando pelo rosto enquanto uma mistura de mágoa e raiva a consumia.
— Adeus, então.
As palavras dela ficaram pairando no ar, como um eco que eu sabia que nunca se apagaria. Vi-a se afastar, levando consigo uma parte de mim que eu sabia que jamais seria recuperada. Fiquei ali, sozinho, me perguntando quantas outras pessoas eu afastaria enquanto tentava, inutilmente, descobrir quem realmente sou.
E assim começou o meu processo de recuperação. Vivi à base das histórias que Eleonora contava sobre Jake e nossa infância, mas nada preenchia o vazio. Soube que Jake era o responsável, o protetor, enquanto eu… era a ovelha n***a. Entendi que tinha perdido mais que um irmão. Perdi um amigo.
A dor de não lembrar me corroía. Fui tomado por uma depressão profunda. No fundo do poço, entendi que precisava reagir. Resolvi recomeçar. Deixei Portsmouth e aluguei um apartamento em Londres, arriscando-me numa nova vida.
Com o tempo, o trabalho trouxe-me independência. Comecei por baixo, mas, com esforço, galguei posições, até finalmente alcançar o cargo de diretor. Mas agora, apesar das conquistas, o vazio persiste. Será que lembrar seria realmente a cura?
Hoje, enquanto fito as minhas mãos trêmulas, respiro fundo. Preciso sair daqui viajar, escapar dessa angústia que me prende. Dou um riso amargo, sentindo raiva. Essa casa luxuosa é fria e vazia. Tanta luta, e, no fim, sinto-me vazio.
Lembro de uma moça que conheci, uma tentativa de preencher o vazio, mas nada mudou. Os encontros tornaram-se obrigação, e o vazio continuou. Cheguei à triste conclusão de que sou incapaz de nutrir qualquer sentimento forte.
Às vezes, no entanto, sinto que já amei alguém. Será que foi Sara? Será que me precipitei em deixá-la? Talvez ela tenha sido o amor da minha vida.
Essas lembranças trazem-me ao presente. Acabei de terminar com Débora, outro relacionamento que não passou de uma ilusão. Decidi que só me envolveria novamente quando houvesse algo real.
Mas essa promessa só me trouxe solidão. Desde então, só tenho as noites vazias como companhia. Pergunto-me se essa inércia um dia vai acabar.
O carro finalmente para na garagem, e o som da porta se abrindo me arranca dos pensamentos. Enxugo uma lágrima antes que Edward Herman, meu motorista, perceba. Ele me oferece um sorriso discreto e respeitoso.
Desço do carro com a pasta nas mãos, tentando disfarçar o m*l-estar. Ele me observa, preocupado.
— O senhor está bem?
— Sim. — Respiro fundo, tentando parecer firme. — Precisamos conversar.
Ele se senta ao meu lado, atento. Ele e sua esposa, Marta, cuidam de tudo com dedicação. Fito minhas mãos por um momento, hesitante.
— Tirei um mês de licença. Vou a Portsmouth. — Tento um sorriso tranquilo. — Você está dispensado esses dias.
Edward me olha, surpreso e cético.
— Tem certeza de que não quer que eu o leve?
— Não se preocupe. Só preciso dirigir um pouco.
Ele hesita, mas assente.
Na manhã seguinte, acordo cedo, ainda inquieto. Desço até a garagem, e lá está Edward, com o olhar preocupado.
— Boa viagem, senhor.
— Obrigado, Herman. — Tento um sorriso que m*l convence a mim mesmo. — Cuide-se também.
Ele assente devagar, e o avisto me observando enquanto parto.
Dirijo pelas ruas de Londres enquanto o sol desponta, tingindo tudo com um tom dourado. O campo logo substitui os prédios cinzentos, e sinto um lampejo raro: expectativa.
A estrada se estende à minha frente, e, por um momento, sinto que posso deixar algo para trás. O vazio parece se dissipar, como a neblina que se desfaz com a chegada do sol.