- Que tipo de brincadeira sádica é essa?- Virgínia cruza os braços em protesto.
- Faz parte do figurino de vocês!- Explica Leila.
- E por que diabos o nosso figurino precisa de galhos?- Virgínia bufou.- Vamos fazer papel de que? Curupira? Saci Pererê?
- Saci Pererê não leva galho nas roupas.- Alertou Fantine.
- E nem o curupira.- Completou Melissa.
- Aí eu já não sei.- Fantine deu de ombros.- Não lembro o que ele costuma vestir.
- Eu também não lembro.- Admitiu Melissa.- Mas com certeza não tem galho.-
- Como pode dar certeza de uma coisa que não sabe?- Fantine ergueu uma das sobrancelhas.
- Ora… Porque ninguém seria tão exótico a ponto de enfiar galhos nas roupas dos personagens.- Explicou Melissa.
- A Leila é!.- Virgínia acusou a amiga, furiosa.
- Ei! Os personagens de vocês foram amaldiçoados com chifres, e vamos precisar dos galhos para improvisar.- Falou Leila, em sua defesa.
- E você tinha que me amaldiçoar junto com o Daniel? Já não é maldição o suficiente fazer o trabalho junto com ele?- Virgínia revirou os olhos, exasperada.
- Achei que vocês tinham feito as pazes.- Disse Mel.
- Pazes? De forma alguma. Combinamos que não vamos nos atacar durante o trabalho, mas isso não significa que vou virar amiga dele.-
E verdade seja dita, desde que acordou com Daniel sobre a possibilidade de não se enfrentarem a cada segundo no trabalho da escola há dois dias antes, eles evitaram se encontrar ao máximo, o que consequentemente resultou em uma ausência de conflitos por parte dos dois.
Desde que se conheceram não tinha um só dia que não soltassem farpas um para o outro, mas finalmente resolveram dar uma trégua.
Sentada na poltrona da casa de Melissa, cujo jardim usariam para ensaiar, Virgínia lembrou da sensação de sentir a mão dele tocando a sua. A pele de Daniel era morna e macia, não tinha um traço de calo, o que era quase impossível para quem se exercitava.
Ela mesma possuía alguns.
- No que está pensando?- Perguntou Melissa, sentada de frente para ela, no sofá que ficava de costas para a entrada do segundo ambiente da sala.
- Em nada relevante.- Virgínia deu de ombros.- Por que não mandamos encomendar dois pares de chifres?-
- Poderíamos pedir emprestado a Verônica, tenho certeza que ali tem mais do que dos pares.- Melissa abafou um risinho.
- Deus me livre. Daquela ali eu não quero nada, menos ainda o chifre.- Falou Virgínia.
- Isso pode parecer engraçado, já que se trata da Verônica e sabemos muito bem que ela está tendo o karma que merece… Mas traição é algo tão… Deplorável.- Fantine parecia melancólica.
O olhar dela ficou distante, perdido, como se tivesse ficado presa em alguma lembrança. Fantine teve uma experiência bastante dolorosa no início do ensino médio, e isso fazia com que ela se fechasse para qualquer possibilidade de relacionamento. Ela estava ao lado de Melissa, no mesmo sofá, que precisou lhe tocar na coxa, para que a outra saísse do seu estado de transe.
- Tá tudo bem?- Perguntou Virginia.
- Unrum.- Mentiu Fantine.
- Vamos ensaiar três cenas hoje.- Falou Leila de repente, caminhando de um lado para o outro no espaço coberto pelo tapete aveludado que tinha entre um sofá e outro.- A da Fantine com o João, a da Melissa com o Bruno, e a do Daniel com a Virgínia.
- Ah não! Não tínhamos combinado nada sobre eu contracenar com o Daniel.-
- Virginia, por Deus. Vocês vão ser amaldiçoados, é lógico que vão ter que interagir.- Falou Leila, impaciente.
- Não é nada de lógico. Podemos ser amaldiçoados separadamente. Pessoas de outros continentes podem ser afetadas com a mesma maldição, quanto mais em cenas diferentes.- Resmungou Virgínia.
- Vocês vão ser amaldiçoados juntos e ponto! Não vou mudar o roteiro de novo.- Esbravejou Leila.
- É impressão minha, ou a Leila está tentando criar pares amorosos?- Disse Melissa.
- Eu só acho que vocês têm muita sintonia. Além do mais, não é como se fosse algo romântico, a Fantine me fez tirar as cenas dos beijos.-
- BEIJO? Nunca na minha vida que eu beijaria o Daniel, prefiro esfregar a minha língua no asfalto quente.-
- Olha que você ainda pode pagar pela língua.- Provocou Melissa.
- E qual sintonia eu posso ter com ele? Só se for a mesma vontade que sentimos em esganar um ao outro.- Virgínia afundou o corpo no sofá, batendo com um dos pés no chão.
- Quando o Daniel chegar, vocês dois podem buscar os galhos no parque que fica ao lado do condomínio.- Leila ignorou os protestos da amiga.
...
- Eu já te disse que isso é uma péssima ideia.- Alertou Daniel, segurando os galhos secos com as duas mãos, observando Virgínia escalar a árvore para resgatar um gato que aparentemente ficou preso, e não parava de miar.
- Eu não seria c***l a ponto de deixá-lo chorando e não fazer nada.- Ela respondeu com dificuldade, se concentrando em pisar nos lugares certo.
- Virginia, se esse gato cair, ele cai em pé. Já você… Vai cair como uma manga podre.-
- Eu não estou pedindo a sua opinião, então se você não vai ajudar, fique quieto.- Ela trincou os dentes com raiva.- E manga podre é a sua avó!
- Quer saber? Que se dane! Se cair, não me peça ajuda.-
- Pode ter certeza que seria a última coisa que eu faria.-
- Eu deveria ir embora com os galhos!-
- E por que não vai?-
- Porque não vou te deixar sozinha trepando em uma árvore, sua maluca!-
- Isso não soou nada adequado, e eu juro que se for alguma insinuação…-
- Não é nenhuma insinuação. Por Deus, você não pode acreditar por um minuto que eu sou cavalheiro o suficiente para não deixar uma mulher em apuros?-
- Ah, claro.- zombou a garota.- Tão cavalheiro… Em especial com as suas namoradas.-
- O que quer dizer?-
- Você entendeu muito bem.-
- Quer saber? Não vou ficar aqui sendo ofendido, que se dane você e o maldito gato.
- Já é a terceira vez que você fala isso.-
Irritado com a ingratidão de Virgínia, Daniel deu meia volta para voltar ao condomínio que morava Melissa, quando ouviu um enorme estrondo no chão.
Ele piscou, atônito, e se voltou às pressas na direção da árvore. Ao que parecía, o bichano de pelagem branca não ficou muito satisfeito quando Virgínia tentou segura-lo no colo e a arranhou no braço.
Ela se assustou com o golpe do animal, soltando o galho grosso que usava para se apoiar.
Tudo foi tão rápido, que só deu tempo de sentir a dor aguda e latejante que ardia em seu tornozelo.
- Você está bem?- Daniel correu para acudi-la, soltando os galhos no meio do caminho.
- Gato ingrato! Pois que fique preso, atacou a única pessoa que estava disposta a ajudá-lo.-
Se o gato entendesse o que aquilo significava, Virginia podia ter jurado que ele deu de ombros para ela.
- Maldito audacioso…- Ela murmurou.
- Está discutindo com o gato?-
Virginia fez uma cara f**a para ele. ( Para Daniel, não o gato, embora ela estivesse furiosa com o animal também).
Como se para esfregar algo na cara da garota que continuava esparramada no chão, o gato saltou entre um galho e outro, até chegar em terra firme.
Foi satisfatório para Daniel vê-la boquiaberta.
- Bom…-
- Se disser “ eu avisei”, juro que vou…-
- Não vou dizer nada. Embora que mereça por ser teimosa.-
Virgínia bufou.
- Venha, vou te ajudar a ficar de pé.- O rapaz segurou os dois braços dela, servindo de suporte para que ela consiga se apoiar sem cambalear.
Devido a dor imensurável que sentia, o corpo quase desabou de volta por estar sem forças para encostar o pé no chão, e Daniel agarrou-a pela cintura, antes que chegasse a cair de novo.
- O meu tornozelo está doendo muito.- Ela não evitou fazer uma voz de choro.
Mas ainda tinha dignidade, e não choraria na frente dele.
Daniel sentiu algo diferente ao perceber a vulnerabilidade da moça. Ele queria abraçá-la e fazer toda aquela dor sumir, não suportava ver ninguém chorando.
Ele rezou para que ela não chorasse.
- Pode deixar que eu consigo ir sozinha.-
- Não, você não consegue. E vai acabar piorando o seu estado com essa cabeça dura que tem.-
As mãos grandes e firmes de Daniel ainda estavam pressionadas a cintura esguia, e acidentalmente, devido ao ato brusco de agarra-la para que não caísse, o polegar dele encostava na curvatura de um dos s***s de Virgínia, o que o deixou completamente nervoso ao perceber aonde estava tocando.
Daniel jurou ter sentido o seu dedo pegar fogo.
- E-eu acho que consigo caminhar se…-
- Você não vai conseguir.- Ele disse secamente, ao perceber que começou a sentir coisas completamente contra a sua natureza.
Tudo que envolvia interagir de bom grado com aquela mulher era contra a natureza dele.
- E o que pretende? Me carregar no colo.-
- Acertou.- Cuidadosamente, ele apoiou um de seus braços ao redor do quadril, tentando não se afetar por sentir as curvas generosas das nádegas se apertarem contra seu abdômen. O outro braço ele apoiou na coxa, conseguindo uma estabilidade em sustentar o peso do corpo dela.
Ela abriu os lábios com o susto, e ofegava a medida que o garoto se movia, tendo o corpo rijo com o medo de cair novamente
- E os galhos?- Ela olhou para ele.
- Danem-se os galhos.- Ele sentiu o corpo estremecer com o contato visual.
Virginia Salsa tem um belo par de olhos verdes, e uma mancha azulada contornava uma de suas pupilas, que naquele momento, as duas bolas pretas estavam dilatas devido a exasperação da garota.
E os lábios dela? Eram incrivelmente beijáveis, como Daniel nunca havia reparado neles?
Talvez até tivesse, mas nunca foi surpreendido pela súbita vontade de beija-la.
Os outros membros da peça estavam ensaiando no jardim, quando Daniel voltou com Virgínia no colo. Leila narrava as cenas para Fantine e João, que estavam próximos o bastante para causar um certo desconforto em ambos, principalmente nela, que resistia a qualquer contato físico muito próximo com a espécie masculina.
- Aí agora vocês tocam os narizes, simulando um beijo.- Explica Leila.
- Leila.- Fantine fuzilou a amiga com os olhos.- Você prometeu que tiraria as cenas de beijo.-
- Era beijo técnico.-
- Continua sendo BEIJO.- Vociferou Fantine.
- Mas agora não! Só vão encostar os narizes, o que tem demais nisso?-
Apesar de não ser um beijo, o gesto continuava muito íntimo.
- Relaxa, Fan. Eu não mordo.- Brincou João, segurando o queixo da garota com suavidade para arrastar para o lado, fazendo-a olhá-lo.- É só tocar a ponta do nariz.- A última frase ele sussurrou muito próximo de seu rosto.
Fantine pigarreou, se afastando a tempo o suficiente para ver Virgínia sendo carregada por Daniel.
- O que aconteceu?
Melissa e Bruno, que liam outros manuscritos do roteiro, viraram aturdidos para trás.
Marllon já tinha corrido na direção dos dois para ajudar.
- Sua amiga cabeça dura caiu da árvore e provavelmente torceu o tornozelo.- Daniel explicou á Fantine.
- Vem, leve-a até o carro.- Marllon pegou as chaves que estavam no bolso, apertando no botão que destravava a porta.
- Se não fosse trágico, seria romântico.- Comentou Leila.
- Romântico? Provavelmente eu vou ter que me afastar dos treinos, e sabe quem vai ser a capitã temporária?
Leila engoliu em seco.
- Ah… Agora não parece tão romântico, não é?- Virgínia revirou os olhos.
- Por isso eu disse… Se não fosse trágico.- Resmungou Leila.
...
Na manhã seguinte
Para o infortúnio de Virgínia, ela teria que ficar com o pé imobilizado por pelo menos dez dias para se recuperar bem da torção. O médico liberou-a de ir ao colégio, mas teria que se locomover com a ajuda de alguém, e evitar ao máximo encostar o pé que sofreu a lesão, no chão.
As meninas se alternaram entre si para carregá-la, tentando sempre deixar o ambiente mais confortável possível, colocando uma cadeira extra ou qualquer outra coisa que pudesse manter a perna de Virgínia erguida.
- O destino é mesmo muito justo.- Verônica murmurou, ao chegar bem perto do grupo das outras meninas.
- Verônica... Eu estou segurando um Becker com 100% de ácido clorídrico... Você quer realmente fazer isso?- Melissa aproximou-se ameaçando as garotas ao erguer o braço para frente.
- Só se você estivesse com vontade de ser presa e responder a um processo muito alto.- Ivy se interpôs entre Verônica e Melissa.
- Talvez valha a pena.- Melissa esboçou um sorriso maquiavélico.
- Chega, Mel. Não vale a pena perder a liberdade por essa daí.- Virgínia tocou na mão de sua amiga, virando o rosto o máximo que conseguia para o lado, dentro das suas limitações.- Não perca seu tempo tentando me afetar.
- O que interessa é que eu.- Verônica apontou para si mesma.- Agora sou a capitã
- Por dez dias.- Disse Fantine.
- Graças ao Daniel que a carregou no colo até o jardim da casa da Mel.- Leila não resistiu em alfineta-la. -Se não fosse por ele, a Virgínia teria forçado bastante o tornozelo para caminhar mais.-
- O que está insinuando?- Rosnou Verônica.
- Eu estou insinuando alguma coisa?- Leila tamborilou os dedos no queixo, se fazendo de desentendida.
Verônica pisou duro na direção contrária, saindo do laboratório.