Prólogo

1654 Words
Novembro, 2004. Seus músculos vibraram em reflexo à força da brisa fria que a atingiu. A menina de cabelos loiros pedalou com mais rapidez, segura de que a adrenalina faria com seu corpo se esquecesse daquela tarde fria de Outono. Porém, nem mesmo seu sangue aquecido pôde preveni-la do segundo assobio do vento gelado. Ela estremeceu uma segunda vez, ouvindo e sentindo o estalo abaixo de sua bicicleta quando a mesma atravessou o caminho de folhas amareladas que cobriam o chão como um tapete. Os pneus de seu novo brinquedo já estavam cobertos por um amontoado de folhas, mas ela não se importava. Crianças não costumam se importar com qualquer mínimo sinal de perigo de qualquer modo. Um par de cabeças a observava de longe de tempos em tempos. Sentados na grama verde, naquele instante coberta por um fino pano vermelho para piquenique, estavam os seus pais. Seu pai era um homem esguio e com uma aparência autoritária, muito raramente sabia como dar um sorriso de verdade, por isso assumia um olhar impassível e os lábios cerrados como sua expressão natural. Passava tanto tempo dando ordens a seus funcionários e empregados domésticos que sentar-se sobre a grama e fingir ser uma pessoa comum era quase uma penitência. Sua mãe era uma mulher de estatura alta e longos cabelos loiros. Seus olhos possuíam a gentileza e a bondade que faltavam no marido. Estavam ambos descalços. A mulher deitou-se com a cabeça no colo do homem; ele continuou sentado e concentrado em seu discurso moralista. Ela fingia que o escutava falar, prestando mais atenção em como as rugas de seu rosto ficavam relaxadas quando ele se distraía com seus próprios pensamentos. Ele fingia não perceber os olhares de sua esposa, narrando suas rotinas empresariais e todos os planos que tinha para a filha. A menina se afastou antes que seus pais notassem. Pensava que o dia estava claro demais para continuar pedalando sobre a sombra, e sentia aquela conhecida rebeldia infantil em provar que podia ficar longe dos olhares dos pais e voltar antes que percebessem. Ela entrou no caminho cercado por árvores que formavam um arco e pedalou com mais pressa. O vento não poderia encontrá-la ali, estava cercada de folhas grandes e amarelas que sempre se soltavam dos galhos e se uniam às tantas outras que já estavam no chão. O pouco espaçamento entre as árvores era preenchido por uma pequena brecha solar que m*l era capaz de aquecer o solo úmido, mas o sol ainda insistia em aparecer e lutar contra as nuvens nubladas. Ela sentiu os pelos de seu corpo arrepiarem como se em um aviso antecipado ao problema, mas não percebeu que as folhas em seus pneus estavam atrapalhando os seus movimentos até que a roda da frente travou e seu corpo foi impulsionado para frente. Ela foi arremessada com força no chão, sentindo a dor quando a bicicleta girou sob seu peso e sua barriga bateu contra o guidão. Levantou o rosto do chão resmungando um pouco, mas não chorou. Sua mãe costumava dizer que mocinhas de dez anos não deviam chorar por qualquer coisa e ela já se achava independente o suficiente para não querer atrair a pena de quem quer que fosse. Ergueu-se em seus joelhos, passando de leve a pequena mão sobre o estômago e sentindo uma ardência em suas pernas e braços. O cheiro de sangue a atingiu mais depressa do que a consciência da queda. Eram machucados pequenos, mas doíam tanto quanto um corte profundo. Sentiu as palavras de sua mãe abandonando-a quando seus olhos se encheram de lágrimas. Levando o antebraço em direção à boca para sugar levemente a pequena ferida que se formara ali, percebeu uma sombra se aproximando com passos decididos e rápidos. — Papai eu me machuquei... — Ela começou a dizer erguendo a cabeça para encarar a sombra. Não era seu pai, mas não deixava de ser um homem. — Pobrezinha. — Ele se abaixou quando chegou próximo o bastante para tocá-la. Segurou seu braço recém-lambido sem nenhuma hesitação e olhou atentamente. Ele deve ser um médico, ela pensou. — Acho que precisamos cuidar disso, abelhinha. Ela não se incomodou com o toque do homem desconhecido, mas com o olhar que ele lançou em sua direção. Era um olhar com tamanha cobiça que os pelos em seu corpo se arrepiaram em aviso uma segunda vez. Sua mãe costumava dizer para não confiar em nenhum estranho, não deveria nem mesmo falar com um, mas a situação fugira de seu controle. A princípio pensara que o homem fosse seu pai pelo tamanho de sua sombra, vendo-o mais de perto tinha absoluta certeza que o homem era menor que seu pai uns bons dez centímetros. Tinha cabelos loiros jogados para o lado e colados à cabeça de um jeito estranho. O forte cheiro de creme capilar e gel invadiram as narinas da menina. Um óculos redondo pendia sobre a ponte de seu nariz, cobrindo as pálpebras levemente caídas sobre seus estreitos olhos azuis. Abaixo de um bigode loiro e cheio, um sorriso cínico esticava os lábios finos. O arrepio que tomou seu corpo foi forte o bastante para ela puxasse seu braço em um safanão. O homem recuou as mãos, levantando-se em um dos joelhos. Ela não desviou o olhar nenhuma vez sequer. Herdara de seu pai a habilidade de intimidar apenas fixando seus grandes olhos azuis em algum ponto em específico, mas o homem não se incomodou. Erguendo as mãos como se estivesse se rendendo, levantou-se e ofereceu uma delas para a menina. — Não tenha medo, abelhinha. — Ele disse ainda sorrindo. Ela fechou a cara quando percebeu o novo apelido que ganhara, mas quando tentou se levantar sozinha, sentiu um puxão dentro de sua bexiga e gemeu de dor. Olhando para o estranho, ela engoliu o seu orgulho e aceitou a mão oferecida, pondo-se de pé. O homem se inclinou para retirar as folhas presas em seu corpo e nesse momento ela viu uma nova figura se aproximando às pressas. Esse sim era o seu pai. Sua mãe vinha logo atrás, respirando com dificuldade e com as maçãs do rosto bastante avermelhadas. — Andrew... — Disse seu pai em tom de cumprimento, erguendo a mão para o homem que já havia se endireitado e se afastado com dois longos passos. O homem sorriu, mostrando uma linha de dentes brancos. — James! — Respondeu-lhe, esticando a mão com entusiasmo. A mãe da menina loira permaneceu calada mesmo quando o homem disse seu nome e a cumprimentou, mas inclinou a cabeça para o lado e pressionou os lábios com força. Parecia extremamente cansada. A menina sabia que a mãe não estava daquele jeito pela curta corrida, sabia que sua mãe estava doente, mesmo que ninguém nunca contasse nada para ela. Precisamos poupá-la, dizia seu pai cada vez que a esposa realizava uma nova consulta e voltava para casa com seus resultados. Nos últimos meses a rotina de sua mãe se resumia em consultas. Ela era formada em Arquitetura e já não trabalhava como antes desde que começara a frequentar o médico. Usava seus dons com traços para entreter a filha e somente desenhava quando estava feliz, porém, já fazia seis meses que não havia desenhos novos em seu escritório. — Abby, deixe-me ver onde você se machucou — sua mãe pediu, chamando-a com a mão. Seu pai e o estranho chamado Andrew desataram a conversar e m*l notaram enquanto a menina caminhava na direção da mãe. — Dói? A menina balançou a cabeça, negando. Os toques de sua mãe eram delicados e precisos. Ela poderia nunca ter tido muita experiência com cuidados médicos, mas sabia como ser uma boa mãe. Lançando um olhar de descrença na direção da menina, inclinou-se no mesmo tempo em que se abaixava em um dos joelhos e assoprou e beijou cada uma das pequenas feridas. Ela certamente não acreditara nenhum pouco na força de vontade da filha em ignorar a dor. — Não estava doendo, mamãe... — Reclamou a menina, embora estivesse satisfeita com os beijos da mãe. Ainda que ela não houvesse beijado a sua barriga, a dor ali também já havia passado. — Você mente tão m*l quanto eu, meu amor. — Disse a mulher afagando levemente uma das mechas loiras da filha. Depois de se inclinar novamente para beijar a menina na boca, se levantou e dirigiu-se ao marido. — Acho que é hora de ir, James. James olhou na direção de sua esposa e assentiu, voltou-se novamente para Andrew, dizendo algumas poucas palavras antes de apertar sua mão uma última vez. Abby teve a impressão de ouvi-lo convidar o amigo para um jantar e viu quando Andrew travou o maxilar e seus olhos brilharam quando concordou com o convite. — Tome cuidado da próxima vez, menina. — Disse Andrew rispidamente, erguendo a pequena bicicleta e empurrando-a na direção de Abby. A menina segurou em um dos canos da bicicleta e se distraiu vendo seu pai murmurar e apoiar uma das mãos na cintura de sua mãe, como se quisesse impedi-la de cair. Seus pais já haviam se afastado alguns poucos passos quando ela ouviu o homem às suas costas falando em um tom tão baixo quanto um sussurro: — Nós nos veremos de novo, abelhinha. A menina afastou aquela pequena desconfiança que sua mãe dizia para que ela sempre mantivesse por perto, porque agora sabia que o homem era amigo de seu pai. Seu pai tinha muitos amigos mais velhos que gostavam dela, e apesar da sensação estranha, Andrew apenas parecia ser mais um deles. Ela ignorou a sensação r**m e, virando-se novamente para Andrew, sorriu em despedida. Sorriu porque naquela época ainda não conhecia na prática a força da maldade humana. Sorriu para o monstro de olhos azuis que não precisava de nada mais do que uma oportunidade para satisfazer o seu ego doentio. Oportunidade que o seu próprio pai havia dado.
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