O Escorpião, parte I

2057 Words
O mundo se tornou tão pequeno naquela janelinha. Tudo estava abaixo do meu nariz. Ao menos consegui pegar um lugar favorável. — Ou quase... — Suspirei. — Disse alguma coisa? — Perguntou uma velha gorda ao meu lado. Um terno rosado e tamancos vermelhos. Cabelos loiros e nariz cumprido. Parecia que estava embalada a vácuo. A qualquer hora poderia explodir e nem precisaríamos de um k******e para ordenar um atentado terrorista. Eram inúmeras fileiras de três bancos. Dentro do avião, na classe econômica obviamente. Só a b***a daquela velha ocupava as duas poltronas. Não sabia se eu sentia inveja daquele enorme traseiro ou se repudiava ao imaginar ela se sentando em um sanitário. Me dava náuseas. Aquela senhora incomodava um pouco. A sorte era que meu corpo tinha a massa bem distribuída. Em resumo, era magra. Mais alguns centímetros e ela me jogaria para fora da janela. — Eu? Não, nada. — Cinicamente, a respondi. Fazia duas horas que levantamos voo. Provavelmente o meu lado do avião deveria estar inclinado devido a "dona redonda" que me acompanhava. Nem sequer olhei para trás. Queria mais era deixar de lado tudo aquilo que vivi e abri meu coração para uma nova vida. Ah... Se eu tenho coração? Claro. Eu sou de Áries, não de Capricórnio. Sem ofensa aos chifrudinhos. Seria uma longa viagem e eu passaria a maior parte do tempo tentando dormir e tentando ignorar também o barulho do biscoito crocante se quebrando nos dentes daquela mulher. Senhor! Da próxima vez, eu venho de jegue. — Quer? — Ela me perguntou e arremessou farelos em minha roupa. — Eu... — Respirei fundo para não socar aquele mamute. — Estou satisfeita, obrigada. — Disse, limpando com as mãos enojada o que ela me cuspiu. Mas, calma garota... Só são algumas horas. Algumas longas horas e então... — ENFIM! CALIFORNIA! — Abri bem meus braços no auge da escadaria do avião. — Com licença... — A minha velha amiga de assento, me empurrou e eu desci a força três degraus de uma vez e quase caí no chão. — Oh, me desculpe... — Ela sorriu. O que eu fiz? Nem sequer respondi, ou teria um infarto. Mas, ela rezasse para não cruzar o meu caminho de novo. Esse aviso ficou nítido na feição perversa e maquiavélica que eu enviei com meu olhar âmbar, incandescente como as chamas do inferno. Após certo tempo, peguei minhas malas. Uma, no caso, fora a mochila nas costas e parti na direção da sala de embarque e desembarque. Aqueles sonetos básicos com atendentes falando para onde eu deveria ir era a primeira melodia que ecoava meus ouvidos. Porém, numa língua estrangeira. Até esqueci de um detalhe... Meu inglês não era perfeito. Claro que sabia desenrolar, mas, precisava aprender mais um pouco para sobreviver ali. — Onde estão...? — Olhei todas as pessoas envolta. Muitas delas com plaquinhas e coisas do tipo e rezava para que não fosse recebida desse jeito. Esse mico eu não queria pagar! — Hey! — Uma voz jovem e máscula chegou aos meus ouvidos. Olhei para trás e me deparei com um rapaz de touca preta cobrindo os ouvidos. Seus olhos eram escuros como a noite. A pele branca. Tipo físico definido para sua aparente idade de dezessete anos. Lábios finos, bem desenhados. Havia um piercing de argola na narina direita e outro detalhe essencial: Possuía tatuagens nos braços. Algo bem... Badboy! Eu poderia dizer que fazia o meu tipo... Mas, estava à procura de outra coisa. — MINHA TIA! — Gritei em voz alta, ignorando o rapaz atrás de mim e vi minha tia a alguns metros atras dele, distraída, me procurando. — Wait! You... — Ele segurou meu pulso levemente. — Vai tomar no cu, eu não falo inglês, p***a. — Me desvencilhei daquele garoto chato e irritante e fui na direção de minha tia. Óbvio que ele ficou com uma feição: WTF? Mas, f**a-se. Enquanto isso, não esperava menos da minha tia. Um avental preso em seu corpo e aquela roupa amarelada cheia de flores. Óculos redondos sobre o nariz e uma feição simpática, parecia uma cabocla. Ela era cheinha, mas, com s***s que tocariam ao chão se não tivesse bem firmes no seu sutiã dentro do grande decote. — Ari! — Assim que ela me chamava. — Minha filha, quanto tempo não há vejo! Dá cá um abraço na titia. — Ainda surpresa por eu tê-la pegado desprevenida, me agarrou forte e me girou no ar. E nossa... Que cheiro de gordura. — Não repara na roupa, estava fazendo a comida. — Ela explicou. — Tudo bem. Para quem passou a viagem toda amassada e sendo coberta por farelos de biscoito de uma velha gorda, isso não é nada. — Me estiquei e bocejei, demonstrando cansaço da viagem. — Mas e então? Vamos? Estou louca para conhecer a cidade! A pensão! — Murmurei toda animadinha. — Claro. — Ela disse. — Deixa só achar o Jason. — Disse. — Jason? Meu primo? — Perguntei com o dedo envolta da mecha n***a da minha franja. — Sim, ele estava louco para te ver! Disse que adoraria te receber com um abraço e fazia questão de ser o primeiro. É uma pena. Mas, você não o viu por aí? — Perguntou curiosa. — Não... — Respondi naturalmente. — Só vi um doido de touca que... — E a ficha caiu. Minha mão foi na face a cobrindo. Respirei bem fundo, rezando para tudo que era santo, inclusive os da Califórnia, para que o rapaz que eu havia esbarrado, não fosse o meu... — Morning, darling. — E aquela voz novamente veio a me arrepiar por trás da nuca, bem colada aos cabelos. — Eu também não falo bem inglês. — Passou por mim, me empurrou com o ombro e saiu enfezado sem me falar nenhuma palavra. — Droga... Ele é de escorpião... — Ou seja, deve ter uma pasta guardada no seu cartão de memória cerebral com o nome de: Rancor. E eu deveria estar no topo. Mesmo porque, meu nome começa com A. — O que deu nele? — Perguntou minha tia, se virando e me chamando. Quieta, apenas dei de ombros fingindo demência. Eu não sabia como iriamos chegar lá, mas, alguém teria de carregar minhas malas. Por sorte, no caminho, Jason havia pegado uma de minhas bagagens e seguiu na frente. Minha tia logo do lado e eu por trás. Antes de sair do aeroporto, passamos por aquela esteira cheia de bagagens que não paravam de rolar em direção a um maquinário. A velha gorda estava à espera da sua. Sim, aquela mesma velha que quase me jogou de boca no chão e me perturbou a viagem inteira. Disfarçadamente, passei perto. Dei aquele empurrãozinho discreto que vocês respeitam e deixei a máquina fazer o resto. Levá-la aos gritos até o fundo e ser vista de dentro para fora nas telas dos fiscais que a acompanhavam pelo computador. — Vaca. — Limpei a roupa e saí. Se a California era linda? COM CERTEZA! Meus cabelos ao vento eram a prova disso. Até que o meu primo tinha um belo carro. Um Dodge Dart 440, conversível, n***o. UM CLÁSSICO. Imaginaria onde ele tinha arrumado aquela belezinha. Jason até o ostentava um pouco para me impressionar ou dar um recado de: Se você não tivesse me mandado tomar no cu, eu poderia te levar para um passeio. Mas, quem se importa? Eu me importo. Pois bem. Deixando isso de lado, eu pude apreciar nem que fosse um pouco de Beverly Hills. Uma cidade impressionante. Desde as garotas bem-vestidas, aos gatinhos no meio da rua e suas motos que me davam falta de ar. E não, eu não tenho asma. Tudo aquilo no caminho do bairro em que íamos nos direcionar. Um local charmoso e caloroso. Não diria Zona Sul ou uma estalagem para ricos, mas, o lugar era agradável para alguém da classe média. Casas padronizadas, dignas dos EUA. Nada rico e exuberante, mas, confortáveis. Ruas asfaltadas, árvores que deixavam as folhas na calçada acinzentada entre vários cercados bonitinhos como naquele dos filmes americanos. Bem diferente do agreste de onde eu vim. Mas, a paisagem me encantou. No fim da rua, uma casa. Uma grande casa. A pensão. Como uma mansão velha, mas nem tão acabada assim. Tinha um jardim na frente e as sacadas mostravam que o local havia mais de um andar. Crianças brincando, não tantas. Velhas sentadas conversando. Homens bebendo aquela cervejinha de domingo. Um lugar sociável. — Bem, chegamos! — Disse a minha tia assim que Jason estacionou na porta. — Nossa. — Sussurrei boquiaberta. — Não acredito que a senhora conseguiu isso. Tipo... Como? — Perguntei entusiasmada. — Essa é história para outro dia. Agora vá descansar. — Tia flor saia do carro. — Jason, leve sua prima até os aposentos dela. Quieto ficou, pegou minhas malas e seguiu ainda emburrado. — O que deu nesse menino? — Tia Flor balançou a cabeça negativamente ao ver a reação dele e deu de ombros. Eu, jamais, iria, dizer, nada! N-A-D-A. O que falar sobre aquela casa? Peculiar. Muito, muito peculiar. Era fantástica para falar a verdade. Eu comecei a ficar mais interessada no que minha tia tinha a dizer sobre como a havia conseguido. Os móveis eram a maioria de madeira fina, de lei e muito bem esculpida. Rústica. Havia até uma lareira na sala com um grande tapete vermelho felpudo e sofás ao seu redor, todos com capas floridas e bem bregas. Quadros na parede de diversos pintores e imagens também retratadas. Possivelmente de alguém que houvera vivido ali antes da velha tomar posse. A escadaria era única, grande e dava uma volta em meia lua até o segundo andar onde pude ver vários corredores e estantes cheias de livros com bancos de camurça para sentar-se e ler à vontade. Janelas por todo local para dar visão do jardim a 360º. Nossa... Esse parágrafo foi pouco para descrever o que estou vendo! Então se vira aí para imaginar. Mais alguns passos e enfim chegamos. Segundo andar. Era na verdade um corredor com algumas poucas portas. Na frente da porta do meu quarto também tinha outra porta para outro quarto. Meu primo deixou o pesar dele esvair ao pôr as malas bruscamente ao chão. Se virou e seguiu. — Jason, espera! — Segurei seu pulso. — Me desculpa, sério! Eu sei que sou grossa as vezes. Mas, você deve saber como eu vivo. Digo.. Onde eu vivi esse tempo todo. Minha vida não foi fácil. E não é que eu esteja tentando me justificar com isso e... — Tudo bem, pequena... — Ele me interrompeu, virou de frente e deu aquele abraço que tanto queria. Seu corpo era quente, acolhedor. Fez meu coração bater mais forte. Meu nariz tocou seu peitoral e senti seu queixo sobre minha cabeça e o pescoço desenhar perfeitamente o meu rosto. Uau! Como eu precisava disso. — Vamos deixar para lá e começar de novo, sim? — C-claro... — Disse sem jeito. — Agora descanse, hoje à noite irá conhecer a todos. Minha tia resolveu realizar um jantar com os hóspedes para te apresentar, certo? — E com passos curtos e mostrando interesse naquele olhar, ele se afastou gradualmente, deixando o lábio inferior escorregar entre os dentes e piscar para mim. Eu apenas acenei, mantive a postura e esperei ele ir. — Por que escorpião?! — Eu choraminguei me arrastando ao chão quase sem ar, me abanando com a palma da mão. — Acorda, vagabunda! — Me estapeei, me ergui e abri a porta, trazendo as malas e mochilas. Além de pensar nele, só queria descansar e me preparar para o jantar. Quem sabe Jason não me convidaria agora para uma volta em seu carro? Bem, não é por nada não, mas só de imaginar... Aos poucos os olhos embaçados davam a visão do teto forrado e bem limpo. Ao meu lado, um criado mudo. Abaixo de mim, aquele colchão que me fazia parecer estar nas nuvens. Não era um quarto grande, porém, era o que eu precisava. Uma suíte e a janela de vidraça com vista para a rua e todo jardim de frente. Minha tia gostava mesmo de mim. Tudo estava tão perfeito. Bom demais para ser verdade. Do inferno ao paraíso em menos de 24 horas.
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