Domingo de missa

3903 Words
    Acordo com o maldito alarme que, por alguma razão masoquista, toca uma música sacra. Eu gosto de acordar e imediatamente me orientar sobre o dia da semana, então eu selecionei sete músicas diferentes e essa é a de domingo, sinalizando-me de forma inconfundível que tenho que levantar para me arrumar para ir à igreja. Eu odeio os domingos, especialmente as manhãs de domingo, ainda mais quando eu não tenho um bom argumento ou uma boa mentira para não ter que ir a missa.     - Eu devia ter irritado meu pai ontem. – Penso em voz alta, procurando energia para me levantar. – Eu preferia uma surra de cinto a passar por essa tortura.     Como o celular está localizado estrategicamente do outro lado do quarto, eu sou obrigado a sair da cama para desligar este alarme h******l. Ainda fico alguns segundos parado no meio do caminho, aguardando o retorno da minha alma para o meu corpo. Eu gostaria de saber para onde ela vai quando eu durmo, se ela vai para o mundo dos sonhos ou algum universo paralelo ou até para o próprio Paraíso. Independente de onde for, deve ser um lugar bonito, assim espero.     Abro a porta do meu quarto e caminho igual a um zumbi em direção ao banheiro, dedicando um pouco mais de atenção na hora de descer as escadas. Seguro com força no corrimão e desço devagar, guiando-me exclusivamente pelo tato já que, quando olho para baixo, a única coisa que enxergo é um borrão escuro. Não consigo nem mesmo identificar algum desnível, embora ainda saiba que eles existam por isso daqui ser uma escada e escadas são compostas por degraus. Eu tenho que aprender a parar de esquecer meus óculos, eles fazem toda a diferença quando preciso transitar pela casa ou qualquer outro lugar. Resumindo, eu preciso dos meus óculos o tempo inteiro para corrigir minha miopia e compensar minha visão subnormal.     Após vencer o obstáculo que é a escada, eu dobro para a esquerda e entro no corredor que leva ao banheiro e a cozinha. Não me dou ao trabalho de acender a luz do corredor, nem mesmo do banheiro. Tiro o pijama e o jogo dentro do cesto, entrando no boxe e ligando, erroneamente, a água fria. Logo conserto meu erro, ainda tão apático que nem tenho energia para me irritar com esse pequeno acidente. Lavo meu cabelo só para demorar, enrolo o máximo possível, até ouvir batidas na porta e gritos confusos que não consigo entender, mas tenho certeza que estão mandando eu me apressar e sair. Talvez também estejam reclamando sobre a conta de água e de gás que vai supostamente quadruplicar de preço só porque fiquei alguns minutos a mais do que deveria.     Seco rapidamente e superficialmente meu cabelo, deixando-o uma bagunça completa, provavelmente pior do que estava quando eu acordei. Enrolo a toalha na minha cintura para sair do banheiro e voltar para meu quarto, ignorando qualquer um que entrasse no meu caminho, o que aconteceu quando entrei na sala. Meu pai está vendo o jornal matinal, então minha mãe deve estar na cozinha porque ela sempre acorda antes dele no final de semana.     - Finalmente, mais um pouco e íamos atrasar-nos por sua causa. – Meu pai dispara, sem nem mesmo dar um bom dia antes de começar com a grosseria. Eu deveria estar acostumado, mas ainda machuca.     - Isso seria fantástico. – Atrevo-me a pensar em voz alta quando já estou no topo da escada, longe o suficiente para ele não me ouvir.     Entro no meu quarto, vagando pelo mesmo até alcançar meus óculos e colocá-lo no rosto, melhorando a definição de... De tudo. A melhor invenção científica de toda a história da humanidade foi, sem dúvidas, essa armação com lentes que corrigem quase todo problema de visão. Ela salva minha vida, nem sei como eu conseguiria ler alguma coisa sem meus amados óculos. Apesar de que, muito provavelmente, o grau já está desatualizado, não que meus pais ou eu nos importemos com isso.     Abro meu guarda-roupa, deparando-me com minha quantidade limitada de roupas. Não posso me orgulhar do estado delas, pois a maioria é muito velha, mas tenho orgulho da minha minuciosa organização que me permite achar tudo bem facilmente. Na verdade é algo bem simples, as roupas casuais ficam na extrema direita, as roupas de sair na extrema esquerda e os uniformes da escola ficam bem no centro, servindo como uma divisa entre as duas outras categorias. Eu me limito a transitar entre esses três estilos de roupas durante toda minha semana, exceto nas manhãs de domingo.      Como hoje é, justamente, domingo de manhã, eu ignoro todas as roupas penduradas e me abaixo, abrindo a única e longa gaveta do meu armário. Lá dentro encontro uma camisa social branca, um blazer azul marinho e uma calça social também azul, além dos meus caros sapatos pretos.  Essa é, de longe, minha melhor roupa e eu só posso usá-la para ir à igreja, minha mãe me puxaria pelos cabelos se eu sequer tentasse usar essa roupa em outra ocasião. Pode não parecer, mas puxões no cabelo são bem dolorosos.     Pego cada peça com todo cuidado do mundo, pois o pior erro que eu poderia cometer seria estragar alguma delas. Caso isso ocorresse, eu teria que lidar com as punições do meu pai e ele é muito pior que minha mãe, suas punições são muito piores que alguns puxões de cabelo. Arrumo-me com a mesma cautela, sentindo minha pele pinicar e em alguns pontos até doer devido ao contato com o tecido. Pode ser uma linda roupa, mas é muito incômoda, então, como eu não quero tentar impressionar ninguém, eu a odeio tanto quanto odeio todas as manhãs de domingo.     Passo novamente a toalha nos meus cabelos, dando uma última secada antes de penteá-lo. Faço ambas as coisas sem olhar em um espelho porque não gosto de ver minha imagem refletida, só paro diante de um quando estou sem óculos. Até costumava ter um espelho no meu quarto, na verdade a porta do meu guarda-roupa tinha um espelho embutido e eu... Eu o quebrei, estava passando por um péssimo dia e acabei perdendo a cabeça. Eu me arrependo de ter feito isso, esqueci-me que quebrar um espelho trás sete anos de azar. Estou pagando por esse esquecimento até os dias atuais.     - Falta meia hora pra missa começar. – Minha mãe invade meu quarto, ignorando completamente a porta fechada. Paro de me pentear e a encaro, esperando para ver o que exatamente ela quer que eu faça com essa informação. – Já está pronto?     - Acho que sim.     - Então o que ainda está fazendo aqui em cima? Desça. – Ela manda, apontando em direção as escadas. Minha mãe não se mexe e também não parece que irá, não enquanto eu não sair do quarto.     - Estou indo.     Passo pela porta do quarto, espremendo-me no minúsculo espaço que minha mãe abriu para mim. Eu não olho para trás em nenhum momento, sempre sigo olhando para frente e para os degraus da escada, mas, mesmo sem ver, eu consigo sentir durante todo o percurso os olhos dela em mim, como se me vigiasse para garantir que não vou fugir por algum buraco no meio do caminho. Eu bem que queria ser tão bom em fugas quanto minha mãe parece pensar que eu sou.      - Vai fazer alguma coisa segunda-feira? Depois da escola? – Ela repentinamente pergunta quando eu chego no final da escada e, por mais que não exista um contexto, eu engulo em seco por saber o que há por trás dessa pergunta.     - Provavelmente. – Sussurro em resposta, sendo sincero não tenho absolutamente nada em mente, entretanto sempre arranjo uma forma de adiar minha volta e amanhã tentarei com ainda mais afinco por saber o que vai acontecer se eu chegar cedo demais.     - Não venha pra casa antes das quatro. – Ela avisa, mantendo a voz tão baixa quanto a minha. A razão por trás disso é que nenhum de nós dois quer que o papai escute, ele não pode desconfiar que a mamãe trás outro homem para a nossa casa durante o horário de trabalho dele, muito menos que esse homem é o nosso vizinho Ricardo. Como eu sei disso? Um dia eu cheguei cedo demais em casa e desejei furar meus olhos por conta da cena que presenciei.     - Pode deixar. – Concordo, voltando a andar para evitar que essa conversa se alongasse.     Essa foi uma péssima decisão e percebo isso quando dou de cara com meu pai. Sinto todo o peso da traição como se fosse eu que estivesse o traindo e, de certa forma, eu estou mesmo o traindo. Meu pai pode ter todos os defeitos do mundo, no entanto ele sempre foi fiel a minha mãe e não merece essa apunhalada nas costas. Eu deveria contar, sei que deveria, é minha obrigação como filho.     Só que eu também tenho a obrigação de proteger minha mãe, então é uma dualidade c***l. A verdade é que nenhum deles merece minha lealdade, minha mãe não me protege e meu pai me espanca. Eles são péssimas pessoas, péssimos pais, o que, muitas vezes, me deixa com vontade de contar só para gerar caos entre eles. É uma ideia tentadora vê-los gritando entre si como gritam comigo, fazê-los enxergarem que não sou o único pecador dessa família.     O problema é que toda vez que eu cogito abrir a boca, lembro-me do motivo de tê-la mantida fechada até agora. Meu pai é policial, ele tem uma arma e, por mais que nunca tenha levantado a mão pra minha mãe, ele é violento.  Todas essas coisas somadas à descoberta de uma traição podem levar a um desfecho muito trágico, um futuro onde minha mãe está morta, meu pai preso e eu... Eu não sei onde eu estaria, mas sei que eu seria um órfão e isso parece muito pior que minha vida atual.     Na melhor das hipóteses, numa utopia onde ninguém sai morto, preso nem órfão, meus pais acabariam divorciando-se.  Eu sei que nenhum dos dois iria querer ficar com a minha guarda, mas eu não acho que meu psicológico seja forte o suficiente para suportar audiências onde eu veria meus pais tentando livrar-se de mim, fora as barbaridades que eu acabaria ouvindo. Seriam muitas sessões de tortura para, no final, ser decretado uma guarda compartilhada onde eu ficaria sendo jogado de um lado para o outro. Eu perderia minha casa, talvez até tivesse que sair da escola que estudei durante minha vida inteira...     Meu pai não merece, porém não quero que minha mãe morra nem que ele vá preso e não quero perder o pouco de estabilidade que minha vida possui. Eu seria a pessoa mais prejudicada caso essa história viesse a tona, portanto estou permitindo-me ser egoísta, vou continuar corroborando com a traição da minha mãe. Depois de tantos anos nem é mais algo tão difícil de se fazer, essa é só mais uma rachadura na nossa família imperfeita e não chega nem perto de ser uma das piores.     - Por que tá me encarando, pirralho? – Meu pai interroga diante da minha falha, fui tragado pelos meus pensamentos e me esqueci de tudo ao redor.     - Não temos tempo para discussões, José. Vamos, temos que sair agora ou chegaremos atrasados para a missa. – Minha mãe se intromete, passando por nós com a maior cara de p*u.     Ela destranca a porta e nós três saímos, seguindo a pé até a Igreja Católica Apostólica Disciplinada. Frequento-a desde sempre, fui batizado nessa igreja, fiz catequese nela e até cheguei a ser coroinha. Minha vida, um dia, girou ao redor desse lugar. Eu vinha às missas, participava das atividades voltadas para as crianças, tinha amigos... E tudo isso deixou de existir.     Começou com os olhares, algo muito parecido com como ainda me olham e como estão olhando-me agora, só que era muito pior. Isso fez com que eu me afastasse, ou melhor, fez com que meus amigos se afastassem de mim, chegando ao ponto deu não mais ter amigos. Depois veio a dispensa do meu cargo de coroinha, o padre nunca chegou a me impedir de frequentar a igreja, mas não me achava digno de auxiliá-lo na realização de algo tão sagrado quanto à missa. Apesar disso tudo, minha fé ainda se manteve. Estaria mentindo se dissesse que continuou intacta, no entanto ela estava desvanecendo-se tão lentamente que mesmo após meses parecia que nada tinha mudado, até o dia que mudou.     É paradoxal pensar que minha fé se foi devido ao maior milagre da minha vida, por conta de algo que eu tanto desejei. Eu ainda me lembro da felicidade, agora amarga, que eu senti ao saber que ganharia uma irmã. A maioria dos garotos sonha em ter um irmão, mas até nisso eu era diferente, eu sempre quis uma irmã e muito dessa vontade veio por conta do convívio com minhas primas. Existia um abismo entre o meu relacionamento com a Juliana e com a Helena, a primeira sendo minha melhor amiga até hoje enquanto m*l tenho contato com a outra, mas eu gostava muito das duas quando éramos crianças e tinha, admito, muita inveja da irmandade delas. Eu queria ter aquilo também, então acabei querendo ter uma irmã.     Como minha mãe gosta de nomes estranhos, o que é possível perceber ao olhar pro meu nome, resolveram chamá-la de Zuri. Foram meses amando-a incondicionalmente, acostumando-me com o novo nome que faria parte da minha família e pensando em todas as coisas que faríamos juntos. Eu queria dar a ela tudo que eu não mais tinha, ou seja, eu queria ser seu melhor amigo e sua rede de apoio, queria fazê-la rir e confortá-la quando chorasse, queria estar ao seu lado em cada conquista e em cada derrota. Eu seria parte de sua vida e ela seria parte da minha, assim nunca ficaríamos sozinhos.     - Não se esqueça de fazer o sinal da cruz. – Minha mãe me avisa aos sussurros, trazendo-me de volta ao presente que consegue ser pior que minhas lembranças. O padre já chegou, então poderemos sentar em breve, depois de fazermos o sinal da cruz.     - Eu não me esqueci. – Informo, não errando na conjugação do verbo. Na última missa, assim como em várias outras, eu decidi conscientemente não fazer o sinal da cruz como uma forma de protesto. Eu não queria estar aqui e não acredito mais em nada disso, então não irei seguir seus costumes.     - Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém. – O padre chega na parte em que eu deveria fazer o sinal da cruz junto com todos os outros, mas, para o desagrado dos meus pais, eu não faço e acabo levando fortes beliscões da minha mãe quando nos sentamos. Primeiro é no braço e depois na perna, ambos vão deixar marcas.     Inicia-se então a liturgia da palavra, momento em que o padre vai ler vários trechos da bíblia e discursar sobre o significado dos mesmos. Essa é a parte mais chata de todas, um monólogo sem fim e ouso dizer que até repetitivo. Eu poderia dormir sentado se sua voz não ecoasse tão alto pela igreja, entrando a força em meus ouvidos.     - Todos os primogênitos do Egito morrerão, desde o filho mais velho do faraó, herdeiro do trono, até o filho mais velho da escrava que trabalha no moinho, e também todas as primeiras crias do gado. – Ele recita o Êxodo 11:5, a parte que fala sobre as 10 pragas do Egito, mais especificamente a última delas que, sem dúvidas, foi a mais c***l de todas.     Sei bem disso porque minha família foi amaldiçoada dessa forma, ou melhor, quase dessa forma. Ao invés de ser eu, o primogênito, o afetado por essa praga, quem acabou sofrendo foi a Zuri, minha irmãzinha. Eu daria tudo para estar no lugar dela, tirar todas as suas dores para que ela pudesse levar uma vida normal, igual a todas as crianças da idade dela. Nenhuma criança de nove anos, nenhuma mesmo, deveria ter que passar por isso.     - Quando nós vamos falar sobre a Zuri? – A indagação me escapa, entretanto não é nada abrupto porque isso estava entalado há dias na minha garganta.     - Estamos no meio da missa, Lacedêmon. Agora não é hora de ficarmos de conversinha.     - E quando vai ser? – Insisto, pois eles estão evitando esse assunto desde que os contei da terrível novidade. Eles pareceram sequer se importarem, mas eu me recuso a acreditar nisso. Eu aceito que não se importem comigo, no entanto não aceito que ajam com esse descaso com a garotinha perfeita deles.     - Você ouviu a sua mãe.     - Sim, eu ouvi, mas vocês não estão me ouvindo! – Exclamo, inconscientemente erguendo a voz acima de um volume aceitável. Agora que já ultrapassei esse limite, não irei recuar. – A Zuri tem câncer! Ela foi diagnosticada com leucemia! Como... Como vocês podem estar calmos e levando suas vidas como se não tivesse nada demais acontecendo?! A filha de vocês deve estar nesse momento em um hospital, lutando pela vida, e vocês estão aqui! Vocês estão aqui prestando homenagem ao Deus que a deixou doente!     m*l termino de falar e tenho meu braço agarrado com força pelo meu pai, é dessa forma que ele me ergue do banco e me arrasta pelo corredor da igreja até a saída. Somos acompanhados pelos olhos de todos, inclusive o padre que até interrompeu sua leitura para nos observar e contribuir para o silêncio perturbador. Sinceramente, não me importo quando meu pai me arremessa para fora da instituição sagrada como se eu fosse um demônio, apenas consigo ficar satisfeito pelo sangue ter voltado a circular por todas as partes do meu corpo.     - Pare de nos torturar, Lacedêmon! Já se passaram anos! Você não tem mais uma irmã e nós não temos mais uma filha! – Ele n**a a existência dela, o que me incita a respondê-lo, entretanto meu pai é mais rápido. – Além do mais, Deus é a única razão dela ainda estar viva, então não o ofenda em sua própria casa!     - Talvez vocês não a vejam mais como filha, mas o fato de vocês terem a dado para outra família nunca vai mudar o que sinto pela Zuri! Ela é minha irmã e o seu Deus está matando-a lentamente! – Acuso novamente, recuando alguns passos ao vê-lo fechar as mãos em punhos como se fosse bater em mim. Eu me calo diante disso, tendo um breve momento racional que me faz lembrar-me do preço que pagarei mais tarde por esse meu comportamento.     - Quer saber? Você é mesmo um caso perdido, indigno de entrar em um local sagrado, então fique aqui fora com seus pecados e aguarde sua ida ao Inferno. – Ele diz antes de me dar as costas e voltar para dentro da igreja, deixando-me sozinho com minha raiva cada vez menos intensa e a minha crescente tristeza.     Ando um pouco e me sento nos degraus de pedra, sem vontade alguma de ir a algum lugar e impossibilitado de voltar para casa já que estou sem as minhas chaves. Tampouco irei retornar a igreja, para começo de conversa nunca nem quis vir para cá e agora desejo ainda mais distância desse lugar cheio de hipócritas. Eles pregam amor, compaixão, mas a verdade é que por baixo dos panos são pessoas que batem em seus filhos e doam suas filhas.     A Zuri tem apenas nove anos e, após um longo histórico de doenças graves e internações, agora está com câncer. Eu recebi essa notícia no início da semana, através de uma ligação chorosa que me deixou em estado de choque. Depois veio a negação, como se eu estivesse de luto e eu estou, juro que estou, tentando não pensar de forma fúnebre, mas... É tão difícil acreditar que a Zuri vai conseguir sair dessa. Eu sei que ela é forte, muito forte, mas ainda é só uma criança com um péssimo sistema imunológico.     Apoio minha testa nos joelhos para esconder meu rosto quando sinto as lágrimas chegando. Não quero ser visto dessa forma, entretanto nem tento impedi-las de cair porque sei que seria uma batalha perdida. A coisa que eu mais queria no mundo é que a Zuri não estivesse doente, a segunda coisa que eu mais queria era poder estar com ela nesse momento e a terceira coisa que eu mais queria era ter alguém para desabafar, alguém que me consolasse com um abraço e me dissesse que tudo ficaria bem. Por que, além de lidar com todas essas coisas, eu ainda preciso lidar com tudo isso sozinho?     Quando reúno coragem pra levantar o rosto e tentar secá-lo, sou pego de surpresa por um pequeno urso que monopoliza minha visão e, sem mais nem menos, esfrega sua língua azul na minha cara. Não tenho reação nos primeiros segundos, chocado demais, porém, quando as lambidas continuam, me atrevo a enfiar minha mão no seu pelo e acariciar a pele escondida. Fungo algumas vezes, arrancando-lhe um latido seguido por mais lambidas. Penso que está tentando me alegrar e sorrio de leve com isso, resolvendo abraçá-lo e afundar meu rosto em seu pelo macio.     - Você também é sozinho? – Pergunto de forma retórica, m*l conseguindo ouvir minha própria voz por ela ter sido abafada por essa imensidão de pelos. Eu poderia me perder e morrer sufocado dentro dele, então acabo afastando meu rosto e o analisando com mais atenção. Primeiro preciso ajeitar meu óculos torto na minha cara, só depois consigo ver uma coleira em seu pescoço, algo que antes havia me passado despercebido. – Você é um cachorro de raça, né? Bem que eu estava achando estranho terem abandonado um cachorro de raça. Você não foi abandonado, você tem uma família que te ama e só se perdeu deles, não foi?     - Na verdade, eu estou bem aqui com o Percy, meu cachorro, mas acho que você não reparou em mim. – Uma voz desconhecida fala comigo, levando-me, por impulso, a mover meus olhos pela guia da coleira do peludo, encontrando um par de mãos segurando a outra ponta. Ainda sem pensar, ergo minha cabeça e só então vejo a pessoa. Meu espanto é tanto que não controlo minha língua.     - César. – Eu falo em voz alta, me arrependendo na sequência ao perceber que ele pode me reconhecer ou pode achar estranho eu reconhecê-lo sendo que nunca antes havíamos nos falado, nem mesmo estudamos na mesma sala.     - Estudamos na mesma escola, não estudamos? – Ele indaga e eu me recuso a responder, mantendo-me em silêncio e voltando a olhar para o cachorro porque ele é uma companhia muito mais agradável. – Você... Tá tudo bem com você? Eu reparei que estava chorando.       - É... Não, é que... – Eu tento explicar-me, chegando rapidamente à conclusão que não tenho mais energia para mentir, contudo também não posso, nem quero, desabafar sobre minha complicada situação familiar com alguém que estuda comigo. A escola é meu único refúgio, então a última coisa que eu preciso é que me olhem e me tratem da mesma forma que o pessoal da igreja faz.     Portanto, eu faço a única coisa plausível e possível nessa situação que é me levantar e correr de volta para o interior da igreja, deixando-o plantado do lado de fora e torcendo para que não me siga. 
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